Dia desses, saindo de um concerto matutino na Sala São Paulo - um dos imprescindíveis Matinais - e me dirigindo para almoçar juntamente com amigos de minha filha no Sesc Bom Retiro, ali pertinho, necessariamente tivemos de atravessar um dos locais onde a Cracolândia ainda mantém uma pequena parte de seu reduto, que agora se espalha pela cidade. Embora possa parecer paradoxal, a passagem pela Cracolândia não oferece perigo, a maioria das pessoas que a compõe são meros usuários, pequenos traficantes, além dos "clientes". Já passei por ali várias vezes, mas nunca a impressão "desajustado" me ocorreu com tanta força como nesse dia. Não os "Desajustados" do último da Marinlyn Monroe e Clark Gable, mas os desajustados do mundo onde vivemos. Conheci muitos na vida e lembrei-me de alguns. Não somente pessoas, mas situações:
Desajustado
I
Conheci Constantino durante o projeto financiado pela
prefeitura de São Paulo chamado Zeladores de Praça, que consistia em fornecer
um curso de jardinagem para pessoas com dificuldades de inserção no mercado de
trabalho, por motivos que poderiam ir da idade, baixa qualificação ou
simplesmente por não se ajustar as regras normais do trabalho. Posterior ao
curso, havia a contratação pela prefeitura, na condição de “bolsista”, onde o
mesmo melhorava seu aprendizado na prática cuidando de praças na sua região,
enquanto não conseguia inserção no mercado de trabalho. Mesmo que a maioria não
conseguisse “vaga no mercado”, o programa foi considerado um sucesso porque
garantia durante o período da Bolsa Auxilio alguma renda para o bolsista e as
praças ficavam impecavelmente limpas. E tudo isso a baixíssimo custo e sem
qualquer perigo de desvio, pois o dinheiro vinha diretamente do ministério do
Trabalho, através do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador).
Constantino é um sujeito alto e
forte como um touro e com disposição e determinação invejáveis. Tinha, porém,
certa dificuldade em trabalhar em grupo, pois tinha manias perfeccionistas e atazanava
a vida dos outros, que se queixavam de que ele ficava só mandando e exigindo,
enquanto não fazia a sua parte. A verdade é que ele se sentia algo
como o “coordenador” da equipe. A solução encontrada foi encarrega-lo de cuidar
sozinho de uma praça enorme, o que ele fazia com competência, zêlo e certa facilidade.
Assim, todos ficamos felizes, especialmente ele, que ao final de seu expediente
olhava sua obra – a praça limpa e bem cuidada – com um enorme sorriso de
satisfação. Somente então admitia jogar conversa fora. Adorava falar de seu
grande sonho, o de comprar um terreninho no litoral e construir uma casinha
para ele e a velha mãe, de quem cuidava. Antes disso, antes do final do
expediente, era inútil puxar conversa com ele.
(A solução encontrada – deixa-lo cuidar sozinho de uma praça
– talvez não tivesse o apoio de terapeutas, se os mesmos existissem no projeto,
pois certamente não aprovariam algo que justamente reforçava sua tendência antissocial,
mas nós não tínhamos tempo para tais deliberações e tomamos a decisão que nos
foi possível no momento. Afinal, o projeto não era terapêutico, e sim de
acolhimento num ambiente de trabalho, justamente aqueles não inseridos
socialmente). Por vezes eu passava pelo seu local de trabalho e à distancia o observava
trabalhando por alguns instantes e concluía para mim mesmo que Constantino seria
um perfeito habitante de lugares como Arembepe, no inicio dos anos 1970 ou a
lendária Big Sur, região da Califórnia, famosa por ser o lar de pintores,
poetas, escritores, músicos, todos pobres e que faziam qualquer trabalho que
lhes garantisse um pedaço de pão e “uma gota de uísque”, tal como relata Henry
Miller que viveu 15 anos na ragião. Entretanto, no nosso mundo perfeitamente
ajustado à produção de bens e ao consumo, Constantino, por não se adaptar as
regras estilo “linha de montagem” – que, não regula somente a ação dos
trabalhadores das fábricas, mas o trabalho de ordem geral, incluindo o
intelectual – era considerado um “excluído” e por isso vivia passando de uma
instituição à outra.
Uma dessas passagens por instituições
deu-se pouco antes de ser aceito pelo Programa Zeladores de Praça. Munido de
uma guia de encaminhamento preenchida por um psiquiatra, se apresentou no CECCO
Vila Guarani, no Jabaquara, onde deveria cumprir uma série de atividades. O
CECCO, localizado dentro de um centro esportivo é um Centro de Convivência e
Cooperativa (Cecco), “...espaço de
convivência entre pacientes psiquiátricos e a população. Seu principal objetivo
é oferecer uma oportunidade de integração social e convivência por meio de
oficinas de artesanato, atividades esportivas, culturais e profissionalizantes...”,
segundo o lema da própria instituição.
Constantino se apresentou
direitinho, mas fez uma pequena modificação: vendo alguns instrumentos de
percussão – tambores, pandeiros, zabumbas – teve uma brilhante e surpreendente
ideia e em vez de se apresentar como paciente, disse que era “oficineiro”, que
daria aulas de percussão. A terapeuta presente ao local achou o máximo a ideia,
pois finalmente iria dar finalidade aqueles instrumentos que ninguém sabia
manusear e que só as crianças que passavam pelo local ou um ou outro paciente
mais ousado arriscava uma batidas. Constantino, bom de pandeiro e de bumbo,
logo reuniu uma turma em torno de si, iniciando uma alegre batucada, para a
felicidade geral. Ninguém teve a ideia, felizmente, de pedir as credenciais.
Constantino comandava o grupo
como um maestro, executando ele próprio e ensinando os demais. Logo todos
estavam envolvidos nos princípios básicos da arte da percussão e tal era o
entusiasmo que os instrumentos foram poucos. Ele não se fez de rogado e ensinou
a quem não tinha instrumento a usar o próprio corpo, numa iniciativa de fazer
inveja ao famoso grupo Barbatuques: palmas, batidas de pé, etc!
Tudo ia as mil maravilhas, até a
chegada da diretora do local. Primeiro indagou o que era aquele banzé e ao ser
informada do responsável, dirigiu-se ao mesmo perguntando seu nome. Constantino
não teve como negar e ao dizer o nome, a diretora estarrecida descobriu que não
se tratava de oficineiro nenhum e sim de um paciente. Imediatamente fez uso de
sua autoridade e encerrou a batucada. E passou uma tremenda descompostura em
Constantino que teve a desfaçatez de enganar a todos. Como era possível tremenda
falta de respeito aos profissionais da
saúde e os pacientes? (Quem conhece o ilimitado orgulho das autoridades da saúde mental pode bem
imaginar como Constantino representou
perigo ao tratar as mesmas como idiotas, segundo a própria diretora assim
considerou.) Humilhado, Constantino recolheu-se ao seu posto e condição de
paciente, pois havia uma clara linha divisória (embora invisível) entre o
paciente e os profissionais de saúde – quem viu o filme Um Estranho No Ninho há de compreender porquê! Era o que faltava,
um paciente dirigir a clinica! A continuar assim, daqui a pouco, ele, paciente,
iria determinar a ela, diretora, o que fazer!
Pois bem: Constantino permaneceu
no local alguns dias, gentil e obediente no principio, mas logo depois não
suportando as amarras das regras, começou por sistematicamente desobedecer e
fazia o que lhe dava na veneta, comparecendo ao lugar quando bem queria, até
que, farto deles e eles dele, romperam o
vínculo, imagino que com acusações mútuas de intolerância. Felizmente por
aqueles dias houve a convocação de uma nova turma de zeladores e o
selecionamos. Ficou conosco durante todo o tempo permitido. Perto do final do
vinculo – que não podia ser renovado – ele se empenhou grandemente acreditando
piamente que o bom desempenho faria com que fosse contratado em definitivo. Pedia-me
insistentemente que falasse bem dele junto as autoridades municipais, pois ele
era pau para toda obra e ninguém se arrependeria de tê-lo como funcionário. Naturalmente
nada disso funcionou. A última vez que soube dele foi que tinha sido contratado
por uma empresa de jardinagem que cuidava do bosque elevado que existe no topo
do Edificio Banespa, sede da Prefeitura. Espero que tenha conseguido comprar
seu terreninho na praia, que, segundo ele, dependia tão somente de um emprego
estável.
Desajustado II
Nos meus primeiros tempos como
funcionário municipal trabalhei no Hospital de Ermelino Matarazzo, onde
costumava jantar com uma senhora que trabalhava desde o seu ingresso na
Prefeitura na ala psiquiátrica. 20 anos de experiência a tornaram capaz de
fazer impressionantes diagnósticos. Depois de comer, ou ficávamos por ali mesmo
ou dávamos uma volta pelos arredores, eu sempre ansioso por suas tiradas, embora
muitas vezes ficasse assustado:
- Está vendo aquela garota? –
dizia ela – Aquela ali, linda e feliz, que acabou de noivar, lembra? Pois de uma hora
para outra ela pode surtar e cometer um desatino que ninguém vai entender nada...
Ou então:
- Veja aquele senhor, ele mesmo,
gentil e simpático com todos. Também de uma hora para outra pode ter um curto
circuito e pirar. E pegará o que estiver ao alcance, uma arma, uma faca ou uma
pedra e atacar pessoas.
- Assim, sem mais nem menos? – Eu
tentava buscar uma explicação, que pudesse ser um indicativo a evitar a tragédia.
- Assim, sem mais nem menos.
Acredite, vi de tudo nos meus 20 anos de clinica psiquiatra! Uma pessoa pode
surtar sem qualquer motivo aparente. E também pode nascer, ser um bom filho, bom
amigo, bom irmão, bom pai, bom avô e viver toda a sua vida normalmente, como um
cidadão comum, do bem, querido e respeitado por todos...
- É, mas tem gente de quem se
percebe facilmente os sinais...
- Esses que apresentam o que você
chama de “sinais de desequilíbrio” são iguais aos outros aparentemente “normais”... O potencial de loucura está inerente. Pode ficar oculto ou explodir! Sabe, uma coisa digo: É por isso que creio em Deus! Só Ele pode evitar que esse
mundo vire um pandemônio.
- Então, é mesmo verdade a história
de que há uma fina linha entre a loucura e a sanidade? – Eu sempre insistia na
busca pela explicação racional.
- Quer saber o que penso? Acho
que não existe linha nenhuma. Estamos todos imersos na loucura e na sanidade. Olhe
a sua volta, ouça o noticiário, leia os jornais! Loucura pra todo lado...
Essas conversas sempre me faziam
pensar. Teria ela enlouquecido de tanto conviver com a loucura? Queria ela convencer o resto do mundo que não havia saída para a loucura que tomou conta
do seu mundo? Ou loucura e sanidade
eram mesmo uma coisa só, sendo a diferença fundamental que uma é destrutiva e a
outra construtiva? Existiria uma santa loucura?
Lembro-me que ela sempre me parecia uma pessoa muito autêntica, como poucas que conheci na vida. Dizia o que pensava. E nos anos seguintes, depois que saí daquele local, descobri o quão é dificil encontrar algo verdadeiramente autentico. Com o modismo
do politicamente correto, um sistema de vigilância incrível se propõe a não
deixar que ninguém saia da linha. Nos vigiamos o tempo todo para não desviar-mos
dos padrões. Vigiamos nossas palavras, nossos atos e nossos hábitos, para não
cometermos deslizes que nos afaste do universo das pessoas normais. Vigiamos e
tomamos cuidado com tudo o que fazemos publicamente e até mesmo privadamente. Vigilância
com o que comemos, por exemplo: não exatamente pensando em nossa saúde, mas em
não ser excessivamente gordo ou magro, enfim, mal visto... Fora do padrão.
Desajustado III
Os chamados desajustados sempre
existiram e sempre vão existir. As sociedades sempre terminam por encontrar um
jeito de lidar com isso, sendo que alguns desses “métodos” tempos depois se
revelam excessivamente cruéis, sendo banidos ou modificados. Isolamento.
Lobotomia. Preconceito. Segregação. Tudo isso são formas de afastar do seio dos
normais aqueles que não se ajustam - sem que tenham cometidos monstruosos
crimes. Raríssimos são os lugares onde a presença de alguém com o cabelo
colorido não chama a si furtivos olhares de reprimenda, mesmo contida.
O filosofo Jurgen Habermas
escreveu uma obra chamada “A Nova Obscuridade”. O que vou fazer aqui não é uma
análise do livro, mas apenas tomar emprestado o termo. Com a queda do Muro de
Berlin, o fim da Guerra Fria, a pós modernidade e tantos “pós”, a ausência de
Utopias fez com que o mundo entrasse num desenfreado processo de consumo. Nunca
se produziu tanto lixo como nesses tempos. Aliás, “lixo” em muitos casos é um
termo incorreto. O mais comum é simplesmente o descarte de material, sua substituição
por outro mais novo, mais moderno, mais bonito. O mesmo acontece com as
pessoas, quando se tornam inaptas ao mercado das personalidades...
Isso está além da esfera politica
e do próprio cotidiano. Politicamente, aliás, usamos a moda que estiver mais próxima
e ao alcance, desde que nos dê condições de continuarmos a consumir para “movimentar
a economia” ou simplesmente aliviar frustrações. Mas percebemos, mas a cada
hora, a cada dia produzimos gigantescas quantidades de coisas que “não nos
serve mais!” Pouco interessa se é um mundo da “nova direita” ou da “nova
esquerda!”
Desajustado IV
Um frágil ser humano tenta abrir
caminho entre montanhas de entulhos. Seja de entulhos materiais, reais, consequência
do consumo desenfreado, seja de autoritarismos, preconceitos, programas de TV, de rádio, música e artes em geral. O ser humano, carente de atenção, busca desesperadamente ser notado, "descoberto". "Falem mal, mas falem de mim!" O mercado de trabalho é apenas um aspecto: no mundo industrial de hoje, não
mais existe o “exército de reserva”, o chamado lumpemproletariado: o avanço das máquinas joga nessa categoria também
as pessoas qualificadas, mas tornadas obsoletas com as máquinas cada vez mais
modernas e operários especializados passam a engrossar as fileiras dos
desempregados sem qualificação, subempregados. Sem contar cm a quantidade
regular de marginais que as sociedades sempre produziram e continuarão sempre a
fazê-lo
Num mundo que delineia um
universo pré-apocalíptico, haverá espaço para a Arte? Essa coisa tão abstrata e
tão concreta, continuará a socorrer o ser humano em seus momentos de desespero?
Por falar em Arte e Artista: existirá possibilidade para o artista (e a arte) num
mundo pouco voltado à contemplação? Haverá possibilidade para o próprio ser
humano num mundo coisificado?
Alguma coisa precisa ser pensada e feita. Por nós mesmos. Podemos ser o próximo ítem da lista dos improdutivos...