Ao ser fiel depositário cultural de sua aldeia, a pequena Junqueirópolis e redondezas, o Indio Cachoeira se
tornou um dos nossos artistas mais universais, produzindo uma musica que
expressa plenamente a história de uma das regiões cujo desbravamento foi dos
últimos a ocorrer no estado de São Paulo: o Pontal do Paranapanema. Cachoeira
encarnou no corpo e na alma a cultura musical da terra onde nasceu, região de
fronteira, marcada pela diversidade. Sua arte era o reflexo do espirito da época e do lugar, singela e
por vezes rude, mas sobretudo honesta, como
bem definiu o blusman nova-iorquino, Woody Mann, ao se referir ao Indio
Cachoeira.
Se “seu” Zé Coco do Riachão foi
chamado pela TV alemã o “Beethoven do Sertão”, o Indio Cachoeira, nome de
batismo de José Pereira de Souza, deve com inteira justiça ser denominado “o
nosso Bach.” É uma imagem poderosa, dado o gigantismo do compositor alemão e
seu significado perante a musica universal e tampouco estamos comparando: m as
é a referência da qual disponho para explicar em palavras porquê a Deusa Musica
fez do Indio Cachoeira, definida morada,
assim como fez com Bach. Ambos foram escolhidos pelas divindades musicais,
tornados seres privilegiados para tornar possível a aproximação do mundo
material e ordinário de uma provável dimensão divina. Cachoeira é desses
mistérios, que dificultam a vida dos críticos não conseguem encontrar
explicações para os talentos natos, como dona Helena Meireles, Zé Coco, Pixinguinha, Cartola, João
Pernambuco, Donga, etc.
José Pereira de Souza não era um
erudito. Era um caboclo, roceiro nascido nas imediações de Junqueirópolis,
cidade próxima à fronteira do Estado do Mato Grosso do Sul, que durante o tempo
em que ele por lá viveu, era chamado simplesmente Mato Grosso, o grande Mato
Grosso. Durante o êxodo rural de meados da década de 1970, mudou-se para a Grande
São Paulo, precisamente em Guarulhos onde trabalhou como motorista de ônibus
antes de fazer carreira como músico profissional, quando substituiu com sucesso
um dos “Pajés”, da conhecida dupla sertaneja “Cacique e Pajé”, de 1995 a 2000.
A "FORMAÇÃO" COMO MUSICO
Não se conhece muito de seus anos
iniciais, mas podemos ter uma ideia de sua “formação” como musico, marcada pela
carência material e de oportunidades, porém, num ambiente musical de intensa
liberdade. Junqueirópolis e adjacências, no extremo oeste do estado de São
Paulo, era, por volta de finais dos anos 1960 e inicio dos 1970, uma região
intensamente musical por ser a música uma das poucas opções de lazer
disponível, levada pelas ondas da Radio Nacional, pela voz elegante do Edgard
de Souza, radialista e também cantor, um dos maiores divulgadores da música
sertaneja de raíz. Fora o programa de radio, de segunda a sexta, das 21 as 22
horas, restava aos jovens produzir sua própria música. Rara era a casa onde não
tivesse um instrumento e um ou mais músicos e cantadores. Nos meses de dezembro
culminando em 6 de janeiro, Dia de Reis, a música era tornada oficio religioso,
envolvendo toda a comunidade: não era lazer, era obrigação de oficio, dever de
cristão cultuar o nascimento do Menino. Para aquela região fronteiriça, confluía
gente de toda parte, desde Minas, Nordeste, do extremo sul (gaúchos),
paraguaios, os últimos geralmente destinados ao trabalho de campeiros, que era como se chamava por
lá os que lidavam com gado. Foi lá, por exemplo, que pela primeira vez na vida,
nos meus primeiros anos da tenra infância, ouvi o curioso jeito de tocar e
cantar “falado” dos gaúchos que só anos mais tarde vim a saber ser a chamada
“cantiga de galpão”... Rodas de violeiros se formavam ao menor pretexto, fosse
no fim do expediente na roça, logo depois do jantar, por volta das 18 horas ou
nos fins de semana. Era o divertimento preferido de todos, além do futebol. Era
só “apurar” o ouvido e se ouvia trinados de cordas em algum lugar e para lá
tocadores e apreciadores se encaminhavam e na “roda” se ouvia sotaques dos mais
variados: modas de viola, cateretês, catiras, rasqueados, ritmos andinos, polcas,
guarânías, corridos, boleros, tangos, etc. Toda música era sempre bem vinda à
roda.
Nos fins de semana, cantar e
dançar era o divertimento básico, bailes eram improvisados debaixo de lonas e
bastava uma sanfona, um par de instrumentos (viola/violão) e mais um ritmista e
a festança ia até o romper do dia. Viajava-se quilômetros e quilômetros em
lombo de cavalo ou a pé para participar, como frequentador ou músico. Alguns
grupos musicais ganharam fama além da região, como Os Tangarás, da vizinha
Irapurú, sob a batuta do sanfoneiro “seu” Eujácio Rocha, a respeito de quem já
falamos aqui no ser-tão paulistano (www.sertaopaulistano.com.br/2013/07/a-musica-do-pontal-seu-eujacio-rocha.html).
“Seu” Eujácio lançou seu primeiro CD em 2012, graças ao esforço de seu
conterrâneo da mesma cidade, Irapurú, o violeiro Julio Santin. Das recordações
infantis, guardo de memória que não existiam músicos ruins. Ninguém ousava arriscar-se
a meter-se cantor não fosse ao menos
para não fazer feio, não obstante todos fossem peões da lida! O sanfoneiro Juraci,
por exemplo, famoso por compor arranjos e por sua versatilidade em acompanhar
qualquer um sem necessidade de ensaio, só “de ouvido”. Quando estive no
festival “Caipirapurú”, festival idealizado pelo violeiro de Irapurú, Julio
Santin, deparei-me com uma dupla de violeiros, os irmãos Mauro Silva e Oliveira
e os mesmos me fizeram reviver o tipo comum de artistas daquelas bandas: alguns
minutos de conversa foram o bastante para pressentir o DNA e sentir-me “em
casa”, reconhecendo um ambiente que me era tão comum, desde que “me entendia
por gente.” Os irmãos, proprietários de
um pequeno sítio no bairro Paturi, de
onde tiravam o sustento lidando no sol a sol, eram como tantos que conheci, aos
magotes, em criança: extremamente tímidos e humildes, mas que se transfiguravam
ao manejarem suas violas, tornando-se altivos senhores, soltando a voz com
autoridade. Por momentos voltei ao tempo
dos batuques e cantorias, de meu irmão mais velho, que compunha a dupla caipira
Nil e Nel, muito requisitada nos
bailes. Aos domingos, na Difusora local
de Junqueirópolis, tinha o famoso programa “Ranchinho do Sapucaia”, com três
horas de duração onde se apresentavam artistas da região. Eu, criança de 5 ou 6
anos ficava profundamente intrigado com a voz de pessoas conhecidas saindo
daquela pequena caixa de madeira, o radio Semp, de quatro faixas de onda,
alimentado por 4 pilhas grandes... Na minha fantasia, eu imaginava as pessoas em
miniatura dentro da caixinha. Era uma “visão”
perfeitamente “normal”, versado que eu era na audição de “causos”, onde ,
magias e assombrações compunham um universo que que nada tinha a dever ao
“realismo mágico”, como veio a ser chamado o gênero literário concebido a
milhares de quilômetros dali, na Colômbia, por Garcia Marquez.
O
“Ranchinho do Sapucaia” acontecia num“auditório de madeira, ao lado da
emissora e reunia todos os domingos cerca de 80 ou mais duplas ou trios. Sapucaia
era o incansável apresentador do programa ao vivo, repleto de curiosidades,
muitas inesperadas. Uma delas era a possibilidade real do músico, matuto por
natureza, “travar” diante do microfone e empacar. Prevendo tais inconvenientes,
uma experiente dupla sempre estava à postos para entrar imediatamente e não
perder a continuidade.
Não sei se José Pereira de Souza
chegou a se apresentar no Rachinho do Sapucaia, pois ele deveria ser muito jovem
na época; não não por ser jovem, mas pelas dificuldades de deslocamento até a
cidade. Mas deveria ser um atento ouvinte e assim entrou em contato com a
musica sertaneja de raíz, da qual futuramente seria um de seus mais dignos
representantes. Era fértil o ambiente musical e cultural que fervilhava e
dominava a região próspera naqueles anos, com muita diversidade agrícola em
torno das fazendas de gado e cafezais (pela metade da década de 1970, talvez
por conta da crise do petróleo e de uma impressionante geada ocorrida em 1975,
houve uma grande crise cafeeira e um forte êxodo rural, no qual minha família
foi incluída, formando uma grande leva rumo à capital. Pela mesma época foi
introduzida em larga escala plantações de cana-de-açucar, o que mudaria para
sempre a feição da região. A população de Junqueirópolis foi reduzida de cerca
de 25 mil habitantes para cerca de 15 mil e o resto é História, destino comum
de drásticas transformações Brasil afora. A imensa variedade de tipos humanos e
da economia rural e tudo o que eles proporcionam, deixou de existir, restando pequenos
núcleos, alguns sobrevivendo até hoje, mas em escala reduzidíssima).
O ambiente cultural de então forjou
no espírito do então jovem José Pereira de Souza um estilo onde não havia,
absolutamente, limites para a criatividade. Isolada dos grandes centros, elo de
ligação com o mundo exterior era o radio. A fusão dos muitos sotaques propiciava
o desenvolvimento de uma cultura autóctone, peculiar, onde os talentos
individuais se desenvolviam viva e destacadamente: se faltava condições
financeiras para comprar instrumentos, construíam-nos eles próprios. E foi
assim que Cachoeira se tornou um respeitável luthier, de modo semelhante a outros dois gênios matutos, “seu”
Nelson da Rabeca e “seu” Zé Coco do
Riachão. O talento e a técnica violeira apurada desenvolvida por Cachoeira foi talhada
com a mesma perspicácia com que aprendeu a construir instrumentos. Não existia
separação entre artista/homem/artesão, tudo nele se misturava de modo
harmônico. Tocava e cantava com o mesmo empenho e dedicação, fosse numa sala de
concerto para ouvidos eruditos ou numa praça de cidade interiorana
O Indio Cachoeira foi herdeiro de
uma tradição, num lugar onde a música era parte inerente ao cotidiano. Como tantos outros lugares, pelo Brasil inteiro, pois, não é exagero afirmar que o Brasil com certeza tem um dos povos mais musicais do mundo e não há nenhum exagero nessa afirmação. A música de Cachoeira tem personalidade e se distingue de qualquer outra - e aqui, não falo em termos de comparação, mas de identidade mesmo. Para ser mais claro, é uma música diferente de qualquer outra em qualquer outro lugar no país; é diferente no estilo da música do sertão do Urucuia, que tem como representante mais conhecido "seu" Manoel de Oliveira, (seu Manelin, mestre violeiro, principal influência de Paulo Freire); é diferente da viola nordestina de Adelmo Arcoverde ou da viola tocada no interior de Goíás; difere de Tião Carreiro, apesar de - a meu ver - ambos terem a mesma "pegada". Também se distingue do estilo de Gedeão da Viola, que era da região de Barretos.
A viola e o jeito de tocar de Cachoeira diz muito do lugar de onde ele veio, do Pontal do Paranapanema, lugar agreste, singelo, de passado violento na luta pela terra, luta que prossegue até os dias de hoje, pois lá desde os anos 1980 é um dos principais locais de atuação do MST (é provável que a existencia da luta pela terra e da permanente tensão se dê por aquelas terras originalmente serem devolutas, ou seja, terras públicas que foram apossadas pelos grandes fazendeiros). Por meados da metade do século XX teve um importante afluxo de pessoas de outras regiões, que ajudaram a formatar o tipico habitante daquelas paragens. E cada um que chegou, trouxe sua contribuição cultural, especialmente musical. (Por outro lado, nos anos 1980, houve movimento migratório oposto, as pessoas saíram da região para a implantação do cultivo canavieiro).
Nos bailes, que ocorriam nos fins de semana, todos eram democraticamente aceitos, fosse ou não conhecido. Bastava se apresentar ao “dono da casa” para ser introduzido ao grupo. A única coisa que não era tolerada num baile era o mal comportamento, fosse algum tipo de atrevimento com as damas ou qualquer exagero relativo à bebida. Se porventura ocorresse, o impasse era resolvido de modo sui generis: o causador da confusão era dominado e amarrado num tronco do lado de fora da festa, assim permanecendo enquanto durasse a festa, quando então era liberado. Mas eventos dessa natureza eram sempre envoltos em mistérios, nunca confirmados. Guardava-se segredo, em geral para poupar a família do causador da confusão. Aqueles eram tempos em que não se afrontava a reputação de uma família, tivesse ou não posses.
A viola e o jeito de tocar de Cachoeira diz muito do lugar de onde ele veio, do Pontal do Paranapanema, lugar agreste, singelo, de passado violento na luta pela terra, luta que prossegue até os dias de hoje, pois lá desde os anos 1980 é um dos principais locais de atuação do MST (é provável que a existencia da luta pela terra e da permanente tensão se dê por aquelas terras originalmente serem devolutas, ou seja, terras públicas que foram apossadas pelos grandes fazendeiros). Por meados da metade do século XX teve um importante afluxo de pessoas de outras regiões, que ajudaram a formatar o tipico habitante daquelas paragens. E cada um que chegou, trouxe sua contribuição cultural, especialmente musical. (Por outro lado, nos anos 1980, houve movimento migratório oposto, as pessoas saíram da região para a implantação do cultivo canavieiro).
Nos bailes, que ocorriam nos fins de semana, todos eram democraticamente aceitos, fosse ou não conhecido. Bastava se apresentar ao “dono da casa” para ser introduzido ao grupo. A única coisa que não era tolerada num baile era o mal comportamento, fosse algum tipo de atrevimento com as damas ou qualquer exagero relativo à bebida. Se porventura ocorresse, o impasse era resolvido de modo sui generis: o causador da confusão era dominado e amarrado num tronco do lado de fora da festa, assim permanecendo enquanto durasse a festa, quando então era liberado. Mas eventos dessa natureza eram sempre envoltos em mistérios, nunca confirmados. Guardava-se segredo, em geral para poupar a família do causador da confusão. Aqueles eram tempos em que não se afrontava a reputação de uma família, tivesse ou não posses.
A música, os folguedos, as
contações de “causos”, os bailes, as quermesses, as Folias, eram por si,
elementos definidores da inserção e coesão social. Nas rodas de “causos” ou
“violadas”, os indivíduos se ombreavam; toda e qualquer diferença era amenizada
ou mesmo anulada. Tocar ou possuir um instrumento era parte da identidade do individuo. Era como usar chapéu,
tido para muitos como “documento”, assim como o facão na cinta, não para bancar
o valente, mas para ser uma pessoa composta:
sem certos apetrechos o homem estaria nu! O Indio Cachoeira era a tradução
musical perfeita daquele rico e efervecente painel, que era a vida no Pontal
naqueles tempos, em toda a sua singeleza agreste. Cachoeira, desde sempre, transformava
tudo ao seu redor em musica: as flores,
a terra, o céu, o barulho da água nos riachos, os pássaros, tudo virava
prelúdios de pagodes, cururus, mambos, serestas. A viola, verdadeiramente, mais que um instrumento musical, era um modo de expressão, de ser. Ser violeiro era um estado de espírito, um modo de encarar a vida, uma simples e rude poesia, importante recurso para encarar a vida e suas vicissitudes.
Que bom que tenha gravado muitos discos e
viajado pelo mundo mostrando seu talento, representativo de um pequeno
universo. Que bom que tenha ganhado mundo ou seu talento teria sido conhecido apenas pelos que o conheceram de perto, como tantos outros: Mestre Joventino, o que vivianas margens do Ribeirão Caicang (Córgo Canganha), o sanfoneiro Juraci, "seu" Chico do Violão, tantos outros. Mas pouco importa: podemos dizer que o Indio Cachoeira representou todos eles. Dizer, como fazia Ricardo Vignini, que ele era "o maior violeiro do Brasil", é homenagear a todos os grandes e verdadeiros mestres e seus fiéis e dignos seguidores. Ele era “todo música”: seu corpo era uma viola, suas veias cordas; seu
sangue e cérebro formavam um todo harmônico de acordes, ansiosos para se
libertar e ganhar vida. Conta o violeiro Santin, que durante uma gravação,
inesperadamente ele mudou a melodia. Os demais músicos silenciaram, ao que ele
indagou:
- Oceis pararo purquê?
- Porque você entrou em outra
musica, que a gente não conhece.
- Ih, é? Oxi, nem percebi, discurpa... – respondeu em sua
simplicidade, sem compreender que acabara de criar, como que do nada, uma nova
musica; tantas eram as melodias que fervilhavam em sua mente.
Se Bach compunha dormindo, como
contam, Cachoeira compunha “sem querer”. Assim era ele, literalmente; nem bem
terminava uma musica, outra já o invadia e buscava expressão. Era um gênio? Ou
simplesmente um servo da Deusa Musica e da Arte, como foi Bach? O alemão não
foi reconhecido em seu tempo e ambos deixaram esse mundo com a mesma idade, 65
anos. Verdade é que a deusa das Artes não faz distinção entre seus escolhidos.
Pode ser um Principe, um nobre. , Ou um roceiro,um ajudante de posto de
gasolina, um motorista da caminhão, um cirurgião, um caipira, um arquiteto, um
capiau. A verdadeira musica não tem preconceito, transita livre entre a
humanidade.
A última região do estado de São
Paulo a ser desbravada, Pontal do Paranapanema, ainda guarda resquícios de
tempos imemoriais, que remontam a um Brasil em estado bruto. Nos dias de hoje
as pessoas se perguntam porquê o Rio Feio, docemente sinuoso tem esse estranho
nome, “Feio”. Poucos haverão de saber que ele era mesmo “feio” e escuro quando
cercado pela densa mata, onde as copas das árvores se encontravam e seu curso
era traiçoeiro, além das temíveis sucuris. Quem saberia a origem exata do nome
para o “Córrego do Fogo”, nas imediações da minúscula vila de nome suntuoso,
Flora Rica? Seria por causa do ouro de aluvião, também chamado “pedra fogo” ou
por conta da lembrança das aldeias devoradas pelo fogo dos índios “coroados” ou
“croados”, refletindo em sua superfície o fogo?
(Os índios coroados ou croados era assim chamados por causa do corte de
cabelo, que formava uma “coroa” no alto da cabeça e mereceu um belíssimo
trabalho de pesquisa do violeiro Levi Ramiro www.sertaopaulistano.com.br/2012/05/na-trilha-dos-coroados-com-levi-ramiro.html ).
Um tempo e lugar ficaram para
trás ou se transformou. Graças aos artistas, a memória persiste. O ambiente
festivo e áspero continua parte do caráter de sua gente. Se se perdeu em
pureza, por outro lado, ganhou em possibilidades de profissionalização e por
conseguinte, registros dos trabalhos. Foi assim que o sanfoneiro “seu” Eujacio
Rocha teve sua arte registrada em CD, assim como os irmãos Mauro Silva e
Oliveira. Julio Santin, violeiro, de uma geração mais nova, exerce medicina em
São Paulo, grava discos e mantém forte ligação com a região.
A projeção do Indio Cachoeira,
tanto em terras brasileiras como no exterior, em muito se deve ao também
violeiro e produtor, Ricardo Vignini, também integrante da banda Matuto
Moderno, conhecida por eletrificar clássicos do cancioneiro sertanejo de raiz.
Por muitos anos compuseram uma sólida parceria, onde todos saíram ganhando.
Cachoeira provou seu valor como musico completo que foi. Da mesma forma como
seu antecessor Tião Carreiro ultrapassou o nicho caipira sertanejo. Cachoeira
sentiu-se perfeitamente à vontade junto ao som pesado do Matuto Moderno. Já li
em algum lugar alguém chamar Cachoeira de o nosso John Lee Hooker. Eu diria que
John Lee poderia ser o Cachoeira deles. Desde tempos imemoriais, dos desertos
do Oriente Médio às ruas das grandes metrópoles, que a música tem sido elemento
de aproximação entre os seres humanos, transitando livremente entre os
modismos. Do mesmo modo como o cururu ou
o pagode de verdade pode ser
eletrificado e transformado em heavy
metal, o contrário também se dá, ou seja, transpor clássicos do rock para a
viola caipira ou mesmo compor direto a pegada forte do rock para a viola, como
foi feito com a composição “Viola de Chumbo”, de autoria de Ricardo Vignini e
Indio Cachoeira; se reconhecemos melodias barrocas ou gigas medievais em riffs metálicos e curtimos os Caprichos
de Paganini para guitarra ou versões das Suítes Para Violoncellos de Bach para
Kalimba, do mesmo modo canções infantis, danças camponesas se infiltram nos
Movimentos Sinfonicos, como Canários, de
Gaspar Sanz no Concerto Para Aranjuez, de Rodrigo ou Ode à Alegria, de Shiller,
na Nona Sinfonia de Beethoven. Por essas e outras que afirmo, sem sombra de dúvida,
que o Indio Cachoeira, construtor de instrumentos e de fazedor de música à
partir de elementos do cotidiano dos arredores do Junqueirópolis, era um clássico.
Um AVC, sequela de um traumatismo
craniano causado por um acidente de transito na cidade mineira de Alfenas, onde
morava nos últimos 15 anos, pôs fim precocemente a carreira do meu conterrâneo,
Jose Pereira de Souza, o Indio Cachoeira. Aos 65 anos, com inúmeros trabalhos
registrados em disco, seja em dupla com outros violeiros – além da conhecida
dupla Cacique e Pajé, gravou com Cuitelinho e ultimamente com Santarem -,
participações em discos de outros artistas, além de seus primorosos registros
instrumentais, material que certamente servirá de referência para estudos para
músicos de hoje e do futuro. Foi embora muito cedo, o Cachoeira, pois tinha a
disposição, humildade e a curiosidade de um menino. Aos 65 anos, ainda tinha
muito a revelar da arte musical. Um gigante, para quem teve a ventura de
desfrutar da apurada técnica de um dos mais impressionantes músicos que já
pisaram por nossas terras brasileiras.