PROSA SOBRE VIOLA CAIPIRA E AS VIOLAS DE VALDIR VERONA



Se um disco é pouco para expressar sua musicalidade, o gaúcho de Caxias do Sul, Valdir Verona, ao completar 30 anos de estrada, decidiu lançar num curto espaço de tempo, dois CDs. Duas obras que contribuem imenso para consolidar sua história de musico, pesquisador, cantor e compositor. E ao mesmo tempo, aponta caminhos dentro do universo da viola brasileira: trata-se dos discos “Viola de 9 Cordas” e “Rio Abaixo”, duas propostas que visam um conhecimento maior do instrumento e das que o mesmo oferece. É de crucial interesse, sejam dos amantes da viola caipira tradicional ou dos músicos em geral. O timbre característico desse instrumento, nos últimos tem despertado interesse para além do mundo caipira e esses dois trabalhos, de certo modo complementares entre si, haverão de contribuir e muito para enriquecer essa terra já fértil.



(Sabemos que modas vão e vem. Na história da musica e não só no Brasil mas por toda a parte, são inúmeros os gêneros bem sucedidos que ao cabo de algum tempo atingem certo nível de esgotamento e acabam por perder força. O caso clássico é a Bossa Nova, provavelmente o movimento musical mais conhecido do Brasil no exterior e que ao cabo de uma década, exauriu-se; o Tropicalismo é outro caso, apesar de menor repercussão. São muitos outros, de menor ou maior expressão, mas fiquemos nesses dois. Não seria, pois, nada anormal se a viola caipira, que alcançou certa notoriedade a partir da década de 1980, de repente se perdesse no esquecimento).

A VIOLA: UM RAIO DE LUZ ATINGE O PATINHO FEIO

Para surpresa de muitos e até de seus praticantes, a viola tem não apenas sobrevivido, como mantido intacta sua influência nos circuitos onde atua.
Embora não arrebate multidões nem venda milhões de discos, enriquecendo artistas e produtores, a viola caipira nos últimos 30 anos chamou a atenção  ao passar a ser notada e tocada fora do universo regional tradicional das duplas, trios ou conjuntos, onde geralmente acrescentava-se o acordeon.
A modalidade autoral-instrumental ganhou importância por destacar a figura do virtuose. Essa especialidade do violeiro se acentuou quando da modificação profunda sofrida pela musica sertaneja tradicional, que deu lugar à musica sertaneja romântica ou moderna que teria começado em meados da década de 1970 com Leo Canhoto e Robertinho, aos quais se seguiu uma longa linhagem, onde a viola tornou-se dispensável, logo ela, o instrumento símbolo de um gênero, dando lugar aos instrumentos eletrificados. Era a conseqüência direta do movimento histórico que forçou a migração do campo para a cidade – lembrando que tal movimento não se deu expontaneamente, mas forçado por situações favoráveis ao grande latifundio. Sem os protagonistas “naturais” da vida campestre, criou-se simulacros, dos quais as festas de rodeios com seus agro-boys e agro-girls são o exemplo mais bem acabado desse novo cenário...
Os chapéus de cowboys, calças jeans apertadas, botas de couro de grife, fivelões nos cintos, eis a vestimenta característica dos novos peões fantasiados que lembravam vagamente os de antanho, o homem da roça.
A verdadeira face da vida rural, agora chamada agronegócio é o ciclo endinheirado. O gosto musical presente comumente pende para o consumo rápido e imediato de uma juventude com mentalidade e modo de vida urbanos para quem o campo é local de diversão eventual ou até trabalho, nas terras da família dos fazendeiros. Para estes, claro, a figura do violeiro associada ao roceiro é sinônimo de atraso. Para eles interessa o brilho chamativo. A crise de identidade nacional é como uma doença silenciosa, que oferece como contrapartida a abundância de superficialismos e pouca ou nenhuma tendência à buscar suas raízes históricas: é a mentalidade do colonizador fazendo a sua parte, regada a coca-cola, recheada de humburgues, energizada por potentes altofalantes. Não estaria longe o tempo em que o caipira, sua música e sua cultura fossem considerados extintos
.
Felizmente, houve, simultaneamente, muitos movimentos na contramão do barulho, da velocidade e do brilho fácil. A cultura popular possui essa misteriosa força, essa misteriosa capacidade de reação – creio eu, provavelmente por constituir e trazer em si, a alma do povo. E assim, a chamada musica de raiz, a musica sertaneja, reagiu.
Nas mesmas universidades de onde saiam os agroboys, surgiram movimentos de resgate da cultura nativa, e por a viola ser um elemento indispensável em se tratado de musica nativa, novos violeiros e interessados em viola caipira surgiram nesse período. Esses novos artistas buscaram diferenciar daqueles e o caminho, apesar de árduo, era a tradição. Somente na tradição era possível reencontrar e resgatar o velho espírito que animou nossa história de algumns séculos apenas, mas amagamada num rico caldo cultural de diversas raças, de diversos povos, como em nenhum outro momento da história humana. “Descobriu-se” que por trás da singeleza ou da rudeza da musica rural, existia uma imensa sofisticação, maturada durante as décadas ou séculos de isolamento.
Grande parte dessa sofisticação e beleza que estava sendo brutalmente soterrada devemos aos violeiros – e todos que buscam valorizar nossos traços culturais, não nos museos, mas na vida cotidiana. É a cultura popular, dinâmica, em constante e fértil diálogo com as culturas diferentes que garante nossa sobrevivência. Não é preciso investigar muito para saber o estrago que a técnica enfiada goela abaixo é capaz de causar: o ronco dos poeira e a fuligem dos caminhões encobrem muito mais que os rastros das tropas e boiadas... (quem vê o abandono criminoso de nossa rede ferroviávia e se sabe que nos países mais avançados o trem é uma séria opção de transporte, pode refletir algo a esse respeito, do qual enganoso pode ser o brilho e a velocidade da técnica e do progresso.)

DE SOBREVIVENTE A PROTAGONISTA

Antes do boom de solistas de viola instrumental que surgiram na contramão das barulhentas bandas do sertanejos romântico, subgênero que incluía de um tudo, como as chamadas musicas de motel, breganejo, etc., algumas experiências haviam sido feitas com o próprio Tião Carreiro (que lançou dois primorosos LPs de viola solo, que posteriormente foram unificados num único CD), Zé do Rancho, Eunúbio Queiroz e outros. Geraldo Ribeiro foi o primeiro a fazer incursões no universo erudito com o instrumento-simbolo da vida rural, ao tocar Bach, em 1971. Mas Geraldo é um caso a parte, não era violeiro e sim violonista. Ressalte-se a  seu favor que foi o primeiro a enxergar, pelo menos no último meio século, outras possibilidades para a viola. Merece destaque a presença pioneira do violeiro paulista Julião, o primeiro a gravar LPs inteiros de viola instrumental com os nossos principais clássicos de então, como “De Papo Pro Á”, “Tristeza do Jeca” e outros. Julião possuía um talento ímpar para tocar diferentes violas, como a dinâmica que até então só era utilizada no nordeste, nos repentes. Causa estranheza Julião não ser mais conhecido. Sua obra deve estar restrita a sortudos colecionadores ou de acesso restrito aos pesquisadores. Algum produtor se habilitaria a resgatar e trazer ao público interessado o trabalho do violeiro Julião¿ (A citação de Julião veio a propósito, pois Valdir Verona foi o primeiro a nos dar noticias do mesmo.)

Mas foi a geração surgida pelos fins da década de 1970 e começo de 1980, preocupada e antenada, que buscava resgatar não só os ritmos e estilos que estavam  esquecidos e suplantados pela modernidade barulhenta e avassaladora, os grandes responsáveis pela afirmação da viola caipira ou brasileira, como preferem alguns. Muitos se embrenharam nos sertões do Brasil para aprender com os velhos mestres, como foi o caso de Paulo Freire, que estudou com seo Manoel de Oliveira. Muitos velhos violeiros foram “descobertos”, como Gedeão da Viola, no interior de São Paulo, Zé Côco do Riachão, em Minas. E muitos outros. Não era apenas uma musica “nova” que se resgatava, mas modos de vida, a história, daí o interesse de movimentos estudantis e das universidades. A viola caipira era mais que um instrumento, era o símbolo e um modo de vida. Foi assim que a tradição atuou como verdadeiro chamariz: foram muitos que adentraram no universo violeiro tendo outra formação musical, casos de Renato Andrade, Roberto Correa, os mais conhecidos. O então jovem Almir Sater, que compreendeu como poucos a viola quando conheceu o mestre Tião Carreiro. (Tião Carreiro e o Indio Cachoeira, por exemplo, não devem ser chamados somente violeiros, que pode dar a enganosa impressão de ficarem restritos a esse instrumento, apenas, Como adiante se verá, ao se falar do uso da viola fora do universo caipira, esses mestres ensinaram que a viola que toca rigorosamente “qualquer coisa”, seu uso é extremamente versátil e tem muito ainda a ser descoberto).
Resumindo: desde então, a viola nunca mais foi a mesma: graças a esse pessoal, mudou-se o modo de ver e tocar viola caipira que atraiu gente do universo chamado erudito, do rock and roll, etc.
Embora não tenha milhões de discos vendidos, nem seja tocada nas emissoras FM ou programas semanais na televisão, a viola caipira firmou um sólido nicho no mercado, mas especialmente nos corações e mentes. Seu publico é pequeno mas fiel e só tem crescido, especialmente entre os jovens.
Os festivais, por todo pais, alegremente disputados, dão conta de um verdadeiro movimento musical em expansão e não apenas a ação isolada de intrigantes e excentricos seguidores. Em vez da ação redutora destinada ao consumo massivo e rápido, esses novos especialistas dialogam com o passado, alimentam o presente lançam bases rumo ao futuro, produtos de uma consciência crítica que não abre mão do talento: Levi Ramiro, Paulo Freire, Fernando Deghi, Jaime Além, Adelmo Arcoverde, Ivan Vilela, etc.
O ressurgimento valorizou a auto-estima do caipira de fato: qualidade não falta e a maioria não chega ao conhecimento do público. Mesmo os mais interessados não dão conta de conhecer tudo e a grande maioria fica restrita aos circuitos regionais. Ser violeiro, vale a pena ressaltar, é um modo de ser e também uma proposta de diálogo, que pode nos levar a descobertas desconcertantes. O jovem Pedro Vaz, do qual ainda falaremos aqui, gravou um disco de viola que pode ser chamado intimista (Dê Espaço ao Tempo). Que dizer do violeiro urbano Amauri Falabella¿ Digamos que a viola caipira – ou brasileira - tem a capacidade de resignificar nossa ancestralidade. Causou-nos alegre espanto a entrada em cena, na distante Europa, da francesa Fabienne Magnant, autora de quatro CDs (dois deles com forte presença da viola caipira) e que chegou ao mundo da viola  por vias não convencionais. Vinda do universo clássico (formada pelo Conservatório Nacional Superior de Música de Paris) e do violão flamenco, Fabienne incorporou à viola ao seu estilo  em vez de procurar imitar os violeiros brasileiros. Ricardo Vignini, que veio do rock e que por anos tocou com o mestre violeiro Índio Cachoeira transita do rock a viola e vice versa: a banda Matuto Moderno, da qual faz parte, eletrificou a viola e por sua vez ele toca os clássicos do rock pesado na viola – Metallica, Led Zepelim. Não é mera curiosidade experimental, mas um verdadeiro exercício para os sentidos. Uma provocação feita muito a sério, o desafio do diálogo está lançado.

VALDIR VERONA E A VIOLA AO SUL

O músico Valdir Verona descobriu a viola caipira depois de ter empreendido vários estudos sobre o violão,  um dos instrumentos preferidos dos pampeanos, instrumento com sonoridade ideal para seus ritmos, especialmente  milongas,  zamba, chacarreiras. Seus primeiros trabalhos são devotados a esses estudos e estão no momento à espera de reedição. A viola foi uma descoberta fortuita e no entanto paixão imediata. Tornou-se seu primeiro instrumento e há  décadas se dedica a estudar, tocar e compreender o instrumento que à época da descoberta era praticamente desconhecida na região Sul. Contudo,  o pesquisador Valdir Verona descobriu ter sido a viola há muitos anos levada ao Sul do país por imigrantes açorianos  e antes deles pelos tropeiros e  jesuítas (não se sabe, por ora, quem primeiro levou - se tropeiros ou jesuitas ou ao mesmo tempo -,  a literatura existente até aqui nada registra sobre o momento em que a viola por lá aportou. O que se sabia até então é que chegou quase ao desaparecimento completo, mas de algum modo, sempre sobreviveu - como sempre acontece com elementos culturais de caráter nitidamente popular: sempre tem alguém que o guarda, preserva e lá fica a espera de alguém que o decifra e coloque em novamente em evidência. 
No momento em que iniciou suas pesquisas 30 anos atrás, a viola no Sul  estava sufocada desde a chegada dos imigrantes europeus que devem trazido o violão e outros na bagagem. Segundo o pesquisador Verona, o acordeon, foi um desses, que por sinal foi definitivamente inserido na cultura local, a ponto de se tornarem os maiores fabricantes nacionais (Todeschini, Veronesi, Sonelli, Universal). Nas Folias de Reis gaúchas observamos a ausência da viola, tão comum no Sudeste e Centro Oeste. Por lá, no Sul,  são substituídas por gaitas de teclas.
Nos anos  finais da década 1970 e começo dos  1980, o grupo Os Tápes utilizavam violas, mas como instrumentos de acompanhamento, não solo.

O trabalho de Verona tem mão dupla: por um lado o pesquisador atento em reintroduzir a viola na cena musical daquelas paragens e por outro valorizar e demonstrar a versatilidade do instrumento. No seu trabalho ao longo das três décadas de carreira, Valdir utiliza a viola seja em execuções solo voz e viola,  instrumental ou em duos ou trios. Seu ultimo trabalho, o Rio Abaixo, mostra temas gaúchos executados na conhecida e tradicional afinação rio abaixo, com isso ampliando as possibilidades tanto para músicos gaúchos usando a afinação de fora quanto para músicos fora do Sul que porventura queiram tocar temas gaúchos na rio abaixo.  O trabalho de Valdir, além da extraordinária beleza, é didático: foi lançado simultaneamente com o CD um livro com as tablaturas e partituras, que em muito vai auxiliar os jovens violeiros e pesquisadores. A ideia é justamente a de oferecer opções de execuções. Uma novidade e tanto para os executantes e apreciadores.





Já o disco “Viola de Nove Cordas”, lançado pouco antes do Rio Abaixo parece trilhar, inconscientemente, no autor, a busca de ecos de sonoridades perdidas no tempo histórico. A viola de nove cordas, instrumento inventado por Verona pareceu-lhe muito adequado para a execução de determinados temas, adequado à sua sonoridade única. 
Seria a viola de 9 cordas o elo, o elemento intermediário (imaginário?) entre a velha viola de arame e o moderno violão?  Ou, ousando ainda mais, o elemento de passagem entre o alaúde medieval para a guitarra barroca?  Sua sonoridade é sólida, encorpada pela MI (chamada 'Mizona')  e ouvindo seus acordes, por vezes nos dá a impressão de ser o resgate de uma sonoridade  que se perdeu entre o barroco e o modernismo...  Como nas boas histórias de mágica e encantamento, somo convidados a nos deixar guiar pelos sons e imagens, seguir o ritmo da correnteza pelos rios da história, revisitar seus portos, saber que a música sempre foi, ao longo do tempo elemento de ligação entre as pessoas, entre as culturas. E continua assim até hoje, sempre haverá de ser assim, desde que permitimos que nossa verdadeira alma seja livre e não escrava de modismos.

Perante tais considerações, cabe alguns devaneios,  com ares de suposição: teria Valdir Verona, sem querer, reinventado a ‘viola de 9 cordas’, que seria na verdade um híbrido entre os muitos muitos instrumentos de corda - os diversos tipos de alaúde, guitarras - que resultaram  no violão moderno? 
Se porventura assim o fosse, esse ‘devaneio” nos levaria para mais longe ainda e suporíamos essa viola de 9 cordas o ponto de fusão, e que, ao cabo de algum tempo, como ocorre com tantos outros  ao longo do tempo, ser deixado de lado, como se deu com a a viola da gamba ou o violoncello piccolo.

Assim sendo, reafirmando, nosso devaneio pode nos fazer acreditar que o compositor e pesquisador Valdir Verona talvez tenha reencontrado nos desvãos de nossa memória coletiva o instrumento em vez de criá-lo. Seu trabalho, nesse caso, teria sido um exercício de prestidigitação, que o fez ouvir ecos da voz (do instrumento) clamando para não ser injustamente esquecida.



E o milagre se fez: uma sonoridade barroca foi resgatada, atravessando o tempo!

Seguem abaixo algumas imagens de instrumentos, todos aparentados entre si.
(A viola de 9 cordas, certamente não existiu até a invenção de Valdir, o que, a meu ver, não quer dizer que algo parecido com ela não tenha existido, ou ao menos, um instrumento híbrido com a mesma função. Outros também foram criados e outros mais ainda deverão ser desenvolvidos, tudo é questão da imaginação ou da necessidade do luthier. Atenção para a Craviola, criada por Paulinho Nogueira, para o Armonico, desenvolvido por Compay Segundo, a guitarra de 20 cordas usada por Narciso Yepes. A Viola de Cabaça foi recuperada pelo violeiro e luthier Levi Ramiro, mas existem antigo registros desse instrumento. Levi denomina as suas recentes criações de Cabacítara, devido a certa semelhança com a cítara indiana, mas de fato é a velha viola-de-cabaça.)
A familia das violas é extensa é extensa, o espaço aqui não caberia. Só em Portugal encontramos a Beiroa, Minhota, entre outras. E deve haver parentes espalhados por Espanha, Turquia, Irã, Extremo Oriente, etc., além dos parentes sul americanos, o charango, o cuatro...

As imagens abaixo não estão em ordem cronológica de aparecimento. Todos eles tiveram sua época de ouro na história da musica e todos, indistintamente, podem ser encontrados ainda hoje em várias partes do mundo, em plena atividade:

viola caipira de 12 cordas 

 guitarra barroca
craviola

viola fandangueira 7 cordas

tiorba ou teorba (guitarra de origem italiana)


viola campaniça

viola de cabaça (cabacitara)


viola capira tradicional


viola nordestina (dinamica)

 viola de cocho. Segundo informado por Alexandre Silva, de Lisboa, 
a afinação da Cocho é semelhante à Braguesa.
Note-se a semelhança do "braço"
do instrumento, sendo o da braguesa um pouco maior.
viola braguesa

violão de 20 cordas
Adbox