GRAZI NERVEGNA, ESTRELA NASCENTE DA M.P.B.





O ano que se aproxima do fim foi pródigo na produção de discos de musica brasileira de alta qualidade. Foram vários, aos quais o blog ser-tão paulistano procurou estar atento, mesmo não dando conta da tremenda demanda. Comentamos alguns, mas muitos outros ficaram de lado, por mera falta de tempo e espaço. Coroando esse pródigo ano, somos apresentados à cantora e compositora paulista, Grazi Nervegna e seu disco de estréia, Anambé.



“Anambé” é recheado de enigmas, signos diversos que devemos seguir com o coração leve e sereno, tal como estivéssemos num bosque aprazível, onde foi abolida quaisquer noção de Tempo e Espaço. Mergulhamos, ora suavemente em límpidas águas de riacho, ora em vôos vertiginosos, arriscando-nos a ser seduzidos pelo encanto. Sonhamos acordados. E como nas imagens oníricas dos sonhos, lembranças imprecisas são a matéria que nos alimenta: lembranças que não são somente da autora, mas de todos nós; memórias “ideais” que vicejam vivamente, persistentes, como só é possível no reino da inocência, onde a pureza reina, livre.
“Anambé” poderia ser um tapete persa, pois conta histórias tecidas num tear mágico onde é narrada a trajetória da autora e de sua gente; suas buscas, seus sonhos que, ora remetem ao passado, ora navega no tempo presente, ora são insights que nos permite descortinar tempos futuros, clarividência só permitida aos poetas e sonhadores.



A idéia do disco nasceu de um profícuo diálogo com a obra da mineira radicada em São Paulo, Consuelo de Paula. Porém, o que a principio era curiosidade e admiração converteu-se em parceria, provocando outros desdobramentos, com as descobertas das próprias potencialidades artísticas. As aulas de canto com Consuelo estimularam, a principio, a produção de um disco de interprete – o que já estaria de bom tamanho, pois Grazi possui um timbre vocal que muito realça a poesia doce e provocativa de Consuelo de Paula. Do contato veio o estimulo (provocação) e conseqüente descoberta da compositora Grazi Nervegna. Os passos principais estavam dados, restando o aprimoramento que foi consolidado com estudos vocais com Tuca Fernandes, técnica vocal com Tatiana Parra e violão com Evandro Pichirilli
“Anambé” é uma porta. Ou um Portal, através do qual Grazi nos convida a visitar seu rico mundo, cuidadosamente preservado, praticamente intocado, imune as extravagâncias ordinárias da vida, especialmente no momento que vivemos.
A expressão Anambé tem timbre poderoso. E misterioso também. Pode ser uma saudação, a palavra mágica que antecede a um ritual de purificação. A palavra isolada significa em tupi-guarani  caminhar junto em parceria”.  É também o nome de uma tribo originária do Estado do Pará, que esteve muitas vezes próxima do desaparecimento completo, mas que conseguiu sobreviver, perdendo grande parte de seu patrimônio cultural, mas ainda mantendo o idioma. Estatisticas dão conta de que atualmente seus membros somam pouco mais que uma centena.
(Qual a conexão possível entre a menina descendente de italianos, estimulada pelo pai a preservar a cultura ancestral e índios de uma região perdida no Pará? São desses mistérios só dados a resolver quem for capaz de admitir seguir as pegadas invisíveis da alma. Embora não haja explicitamente qualquer relação ou reação com a obra de Dércio Marques, é um trabalho que aquele artista certamente apreciaria, ele que era um andarilho musical capaz de decifrar ecos longínquos desde os altiplanos bolivianos aos pés de serra de Minas e Bahia. Seria a influência derciana de João Arruda? A conferir e concordar ou rejeitar quem ouvir o CD).

Verdade é que Anambé, embora indígena, tem sonoridade peculiar que a principio nos faz lembrar simultaneamente as culturas negra e índia, amalgamadas com a cultura européia branca, a tríplice coroa condutora e promulgadora de nossa identidade brasilica.
O CD foi produzido por Consuelo de Paula, que compôs a faixa titulo em parceria com Grazi e participa com mais três composições – Andante, com Amauri Falabella (um clássico de nosso cancioneiro!); Oito Pontas, com Rubens Nogueira e Ypê, com Rafael Altério. A própria Grazi assina cinco faixas solo – Canção do Fogo, Lorena e as Pétalas, Ciranda de Margarida, Monte Verde e India Flor. Completa a décima faixa Rosa dos Ventos, de João Arruda. As descobertas fundamentais da artista Grazi em muito se deve a Consuelo e a aspectos fundamentais de sua musica, dotada de uma brasilidade transcendente, liberta de quaisquer clichê: é apoiada na cultura popular, porém, refundida, recriada com sua marca. A cantora, compositora e poeta encontrou em Grazi não uma obediente discípula, mas alguém com luz própria, capaz de desbravar, por si, novos rumos para a musica brasileira
Anambé é um trabalho autoral na pura essência do termo e não apenas, digamos, conceitualmente: trata-se da própria história da autora, suas lembranças, descobertas que floresceram e a conduziram sedutoramente ao envolvimento com a musicalidade brasileira e latina, a quem foi apresentada pela tia Maria Grazia Nervegna, contrariando determinações paternas.



A arte de Grazi Nervegna não foi produzida num vácuo, ela não pura e simplesmente ocupou um lugar que estivesse vago; sua arte não é arte transitória, coisa muito comum entre um período ou outro da história da MPB: Grazi Nervegna é uma cantora que daria seu recado em qualquer período de nossa história musical por que é uma artista atemporal, que não se perde idiossincrasias marcadas para logo serem superadas, aterradas. Seu disco, seu “Anambé” e seus múltiplos significados – morfológicos, lingüísticos, sociais, antropológicos, religiosos – é o produto, a experiência de toda uma vida, de uma concepção de vida, pois é regido por uma rara ousadia poética, num vivo contraste com sua figura doce, aparentemente pouco afeita a rompantes revolucionários – na falta de palavra mais adequada. Seu disco “Anambé” é a biografia de seu nascimento, ou melhor, de seu renascimento (com todo o simbolismo oriundo dessa expressão que marcou época). Sua arte, sua música, eclode como se uma nave silenciosa pairasse sobre a cidade e o país e despejasse milhões de pétalas coloridas. Mas também é infiltradora, age nos silêncios entre uma frase musical e outra, nos espaços entre as faixas, naqueles breves instantes em que se sai de uma visão miraculosa e mergulha noutra. Entra em nossas cabeças e lá permanece, como “...la mais pura verdad...” parafraseando mestre Atahualpa Yupanqui na baguala de mesmo nome.

Anambé e seus significados, quase impossíveis de abarcar, tal miríade de signos que o percorrem, interrompendo-se aqui, retomando adiante, mas sempre seguindo um invisível fio condutor. Em seu vôo, provocado pela aura brilhante de Consuelo de Paula, Anambé atravessa tempos e espaços sem perder-se nas trivialidades; mas tampouco ignora o tempo presente. A delicada, porém firme direção de Consuelo, a precisão (na medida exata!) de João Arruda, a discreta percussão de Carlinhos Ferreira, por tudo isso desliza a voz suave e firme de Grazi. A trupe, que ainda conta com participação do violeiro Levi Ramiro, inicia uma viagem que não tem fim. São semeadores de sementes e colhedores de flores sob forma de sons: captam e revelam elementos essenciais que formatam nossa brasilidade e o que ela tem de melhor.

Seu vôo brilha em 10 faixas impecáveis,cada qual mais bonita. Os músicos, João Arruda e Carlinhos Ferreira, além de extraordinários artistas, deram o melhor de si até a superação, o que vem muito a calhar com o espírito da produtora Consuelo de Paula, que costuma mergulhar de corpo e alma em tudo o que faz, chegando sempre ao limite da emoção humana, ao ponto de transcendê-la! Grazi entendeu perfeitamente!
 “Anambé” é um convite para “seguirmos unidos, juntos” pelos caminhos, é uma confluência, tão perfeita como um ocasional alinhamento planetário. Esse trabalho é como um raio de luz rasgante na noite brasileira, iluminando o dia que nada nem ninguém impedirá que nasça. Que Anambé seja profético e que desta terra brote frutos e flores, pois é terra ricamente adubada, regada com lágrimas amorosas. Desde o projeto inicial, já veio imantado com o raro dom concedido as coisas imperecíveis, que caracteriza a obra de arte – que não tem tempo ou lugar datado, pois pertence a todos os tempos e a todos os lugares.





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