São
Paulo, a cidade, e todos nós ganhamos um valiosíssimo presente: a conclusão e
apresentação ao público do disco Paisagens Sonoras, que retrata a produção
musical da cidade entre 1830 a 1880. Foram 50 anos cruciais da vida da cidade que
marcaram o inicio de uma transformação radical. O trabalho é uma produção do
selo SESC protagonizado pela cantora lírica, musicóloga e pesquisadora Anna Maria Kieffer e um time de grandes músicos, onde se destaca
Gisela Nogueira (viola de arame, instrumento cuja influência na vida musical
brasileira merece estudos a parte), os Irmãos Carrasqueira, Toninho (flauta) e
Maria José (cravo e piano), Gabriel Levy (acordeon), entre outros.
Anna
Maria Kieffer, incançável pesquisadora da musica antiga brasileira possui
trabalhos antológicos, como os irretocáveis discos Marilia de Dirceu (1989) e Viagem Pelo
Brasil (1990), ambos pelo selo Eldorado. A relação de Anna com a musica
brasileira pode ser reconhecida como uma síntese que aproxima da perfeição a
idéia de junção entre o que se convenciona chamar erudito e popular, sua
voz de mezzo-soprano a serviço de uma
requintada ária de Villa-Lobos ou um lundu
ou uma antiga canção de ninar. É
conhecido seu ambicioso projeto intitulado Memória Musical Brasileira. Não posso assegurar se o presente trabalho faz parte diretamente
desse projeto, por se tratar de um recorte especifico no tempo e lugar; São
Paulo, 1883 a 1880. De qualquer forma, como é regra geral em todos os seus
trabalhos, seu talento de pesquisadora meticulosa nos permite uma descoberta do
Brasil através da musica.
O
disco é uma recriação do ambiente musical, mas também
social e econômico de São Paulo nos meados do século XIX, então apenas um vilarejo
acanhado cuja principal atividade econômica era o transito de tropeiros. Em torno
dessa atividade, ocorria toda sorte de comércio ambulante, especialmente de
alimentos. Nesse ambiente, se misturavam índios, imigrantes portugueses pobres e
escravos. A cidadela, que se organizava em torno do que hoje chamamos Centro
Velho – região que engloba a atual Praça da Sé até o então Riacho do Anhangabaú,
de águas perigosíssimas, posteriormente se estendendo até o atual Largo do Arouche.
A
São Paulo de então, provinciana e pacata, entreposto comercial das tropas. Não
mudara grande coisa, ao menos em importância, desde os séculos XVI, XVII e XVIII,
quando era o lugar preferido dos
bandeirantes, sendo as “Bandeiras” uma espécie de exército informal composto
por soldados, mas também bandoleiros e aventureiros em geral, verdadeira Legião
Guerreira nas ações de conquista/desbravamento
do interior profundo: foi a nossa versão
da “conquista do oeste”, não com o mesmo glamour das pradarias
norte-americanas, mas com certeza recheadas de mistérios no romper das
impenetráveis florestas tropicais. Os “bandeirantes” ainda ocupam forte
presença no imaginário popular, especialmente paulista. A Fundação do Colégio
em 1554 pelos jesuítas Anchieta e Nóbrega e sua aliança com o cacique Tibiriça,
grande senhor do planalto de Piratininga de então fora, a ponta de lança não
somente para a futura conquista do interior e também para evitar maciços
ataques indigenas ao litoral. Atenção para a atuação do intrépido João Ramalho,
jovem aventureiro português que, rompendo praticamente sozinho e sem recursos a
difícil Serra do Mar, teve a ousadia de conquistar a filha preferida do cacique e assim
estabelecer aliança dos brancos
portugueses com o mais poderoso senhor
de terras daqueles tempos; sem João
Ramalho e o apoio de seu sogro Tibiriçá, provavelmente São Paulo não
existiria: em 1552, a gente de Tibiriçá, com a presença do genro, rechaçou um
ataque que teria reduzido a pó o Colégio São Paulo, fundado em 1554. Mas aí é
outra história daqueles quinhentos. Cito, de passagem, a importância de João
Ramalho na origem de São Paulo porque, como nosso assunto é música, muito
provavelmente os portugueses que por aqui passaram levaram na bagagem uma
guitarra portuguesa (braguesa?) e esse instrumente pode ter sido a origem da
viola de cocho, no distante Pantanal. A viola-de-cocho, instrumento rústico,
sempre existiu no Pantanal desde sempre, mas só foi apresentado ao publico
urbano pelo músico gaúcho Zé Gomes, que o “descobriu” através do Projeto “Comitiva
Esperança”, realizado entre 1983 e 1984, contando além do Zé Gomes, Almir Sater
e Paulo Simões.
Almir Sater, Paulo Simões e Zé Gomes
A
transformação da então provinciana São Paulo começou com a criação do Curso Jurídico,
atual Faculdade de Direito do Largo São
Francisco. A criação do Curso se deu em
1827, começando a funcionar de facto em 1828. Para cá acorreram jovens de
famílias abastadas em busca do Curso de Direito, símbolo de status e de poder à
época. Dentre esses jovens, muitos poetas, jornalistas, escritores em geral,
que promoviam saraus, serenatas para se divertirem e em torno deles iniciava-se
uma produção literária/musical. Se o Rio de Janeiro, capital federal, era o
centro político, econômico e da cultura cortesã sofisticada, em São Paulo se
abria espaço para um novo pólo que em poucas décadas, com o advento da economia
cafeeira se tornaria irradiante e pujante.
Não é exagero afirmar que, dentre muitas outras variantes, que a cultura
verdadeiramente paulistana, urbana, mas com evidentes traços rurais, tenha surgido em torno do Curso Juridico, dali
se espalhando nos entornos, crescendo junto com a cidade.
Dentre
os jovens talentos que por cá afluíram, Alvares de Azevedo, o futuro compositor
Carlos Gomes, Fagundes Varela, dentre tantos. Esse ambiente povoado de
estudantes, poetas, músicos, imigrantes, personagens de diversas procedências e
classes sociais, tornou-se propício para o florescimento de um precoce
cosmopolitismo e o ambiente democrático por excelência: o ex escravo Luis Gama,
que assistia as aulas como ouvinte, conseguiu posteriormente atuar na defesa e
libertação de pelo menos 500 escravos e tendo atuação de destaque na vida
nacional ao lado de personagens do peso de Américo de Campos e Rui Barbosa,
entre outros. Esse evento não foi algo banal. Não aconteceria nos rincões da nação,
nos cafundós como se dizia. Aconteceu num ambiente em que predominava urbanidade!
Em 2015 a OAB São Paulo concedeu a Luis Gama o titulo de advogado... antes
tarde do que nunca! O importante, também, a salientar é a vocação paulistana
nascida e alimentada em torno da diversidade de idéias, pois aqui – por causa
do afluxo de jovens idealistas – foi um importante palco de atuação de
republicanos e abolicionistas, que, por sinal, aparece numa das “sessões” do
disco.
Musicalmente
falando, teve grande importância a chegada da família Levy, que inaugurou a primeira loja voltada para
musica, a Casa Levy, ainda hoje funcionando. Por lá se adquiria instrumentos, partituras,
etc. e naturalmente, era um ponto de encontro onde se discutia de tudo e com
muita musica. Isto se deu por volta de 1850/1860. O primeiro Levy, Henrique
Luis (ou melhor, Henri-Louis) era comerciante e conheceu em Campinas o musico
Maneco, pai de Carlos Gomes e seu irmão Pedro e conforme conta Anna Kieffer no
livreto que acompanha o disco, exerceu grande influencia sobre ambos. Foi ele,
por exemplo, quem promoveu a primeira apresentação pública de Carlos Gomes, numa loja de jóias da família
Levy na Rua da Imperatriz, atual R. XV de Novembro. Um dos filhos de Henrique
Luis, Alexandre Levy, foi pianista, compositor e critico musical e dada a sua
formação multicultural, pode ser apontado como um precursor do nacionalismo musical brasileiro,
ao influenciar músicos do porte de
Brasilio Itiberê e Alberto Nepumuceno. Resumindo, os Levy, com seu conhecimento
da musica européia deu o toque de sofisticação que os grupos poéticos musicais
necessitavam. O acervo dos Levy hoje está aos cuidados do bisneto de Alexandre,
o acordeonista Gabriel Levy, que, aliás, participa do projeto Paisagens Sonoras – imaginamos,
superficialmente, o sentimento que deve ter tomado conta de Gabriel ao compor
alguns arranjos que homenageiam seu bisavô! São os “encontros e reencontros”
que São Paulo promove mesmo com séculos de distancia no Tempo!
“São
Paulo – Paisagens Sonoras 1830-1880” nos transporta ao ambiente urbano daquela velha Sampa, em
formação. No nosso passeio pelos velhos lugares, ouvimos não apenas as canções do período, como
“vemos” as paisagens de outrora: os sons da fauna e da flora, farfalhar de
folhas, ruídos de animais. Pelas ruas, quituteiras anunciam seus produtos,
pregoeiros idem. Descobrimos, encantados, que as atuais Quadrilhas Juninas eram
originalmente uma dança de salão francesa, “marcada” por frases em Frances.
São Paulo/foto Militão
São Paulo
As noites
paulistanas de antanho: como a cidade era mal iluminada, eram comuns as
reuniões poético/musical/literárias se darem em barcos/batelões ao longo do Rio
Tietê, que iluminado pelo luar, propiciava o ambiente ideal varar noites e
saudar amanheceres, inaugurando, talvez, o mote que um século depois seria a
característica do lugar: a cidade que nunca dorme!
O
disco, como relata fielmente o titulo, é um resumo muito significativo da produção
musical entre 1830 a 1880. Mas, como se
vê, não é só de musica que se trata. É
uma verdadeira aula de história, aguçada por um cuidadoso e atento olhar que
poderíamos dizer sociológico e antropológico, além de histórico. O olhar
meticuloso de Anna Kieffer garimpa frases, versos, imagens colhidas em
arquivos. Nada lhe escapa. Reproduz os sons e vozes das ruas – equivalente aos
barulhos que hoje ouvimos nas feiras livres. Os apelos dos pregoeiros,
vendedoras de comida, engraxates são transformados em peças polifônicas,
prenunciado naqueles meados de século XIX aquilo que no inicio da terceira
década do século seguinte, o XX, viria a ser a Semana de Arte Moderna: teria
mesmo de ser aqui, em São Paulo, a cidade tornada um imenso painel de mil e uma possibilidades.
Aos
cantos misturam-se a descrições narradas com os primitivos nomes de
logradouros. Por exemplo: fala da Ladeira do Acu, atualmente o inicio da Avenida São João; fala da
Praça de Touros, atualmente Praça da Republica; Rua da Imperatriz, atual XV de
Novembro. E por aí vai!
O
disco é composto seis “sessões”, a saber:
A
Cidade
O
Curso Jurídico
Vozes
das Ruas
Saraus
e Serenatas
Abolicionistas
e Republicanos
A Familia
Levy
Acompanha
um livreto detalhado, contextualizando tempo e lugar, além de breve descrição
das canções - são 40 ao todo, distribuídas pelas seis sessões.
Anna Maria Kieffer
Deveria
ser trabalho obrigatório nas salas de aula. Se não “obrigatório”, com certeza fortemente sugerido.
É
um trabalho que merece continuação, que valerá a pena toda a
trabalheira.
A recriação de uma “memória musical”, conforme lembra o diretor
regional do Sesc na abertura do libreto, não é tarefa banal. Que venha a
produção de musica paulistana entre 1880 a 1930, acompanhando o desenvolvimento
e os acontecimentos que fizeram com que a cidade prosseguisse seu
desenvolvimento vertiginoso até tornar-se a megalópole de hoje.
E
por que não, a produção de 1930 até a década de 1980, completando séculos e
meio de música: da modinha e dos cantos de trabalho, a presença de Mário de
Andrade, as experiências ousadas de Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e, como
não?, do baiano/paulistano Tom Zé, entre outros.