O estado do Paraná já foi São Paulo. Ou foi
vice-versa?
Os orgulhosos
paranaenses devem contestar e afirmar esse contrário, sem recorrer ao douto vaticínio
de historiadores. Se contestados, orgulhosos paulistas heverão de contestar
igualmente. Porém, no fundo, nada disso importa: tudo se deu em relativa paz por
ocasião do desmembramento da Provincia do Paraná da de São Paulo, em 1853, na
sede da Corte Imperial, Rio de Janeiro,
com a presença do Imperador Pedro II.
Entre São Paulo e Paraná, o rio Paranapanema: linha
limítrofe incontestável da mais nova província do Império Brasileiro. Desde
então, foi assegurada, afinal, diferenças cruciais e fundamentais entre esses
estados tão próximos e tão peculiares. Suas histórias que um dia foram comuns,
com a passagem do tempo fundearam características distintas.
Nas breves palavras que se seguem, quero escrever a respeito de um elemento em
que as trajetórias dos hoje singulares estados brasileiros se cruzam, além da
amizade que solidamente nos une hoje e unirá sempre. O elemento comum é a
musica: um violeiro de lá, de depois do Paranapanema, outro das bandas de cá; Um e outro, um ou outro. Facto é que o timbre
tão característico e inconfundível da viola, ao se prestar atenção, percebemos diferenças que a “terra roxa”,- boa para se plantar café e presente nos dois
territórios – não oculta: o que distingue o violeiro paulista do paranaense? É
o timbre, o dedilhar, o sentimento do violeiro?
Pode ser cada uma dessas coisas ou tudo junto. São
tradições distintas, diferenças , que os violeiros Osni Ribeiro e Emiliano
Pereira revelam nos belos discos””Arredores” e “Clareando” .
"ARREDORES", OSNI RIBEIRO
“Arredores” é seu terceiro disco, marcando seu retorno ao oficio de compor e cantar, depois de algum tempo atuando como Secretário da Cultura de sua cidade, período que deve ter lhe servido para aprofundar, por dever do oficio, seus conhecimentos sobre o rico patrimônio que a simplicidade da cidade não oculta na singeleza de suas ruas. No disco, igualmente podem ser pressentidas a transformação nas últimas décadas de um Brasil então predominantemente rural em maioria urbana. Embora as referências tradicionais sejam marcantes, a mistura de ritmos e arranjos e a presença de um grande time de músicos – Antonio Porto, Marco Bosco, Steve Negrão, Tico Villela, João Lucas, Guilherme Chiapetta, Toninho Ferraguti, José Staneck, Joãozinho Barroso, Rafael Gandolfo, Zé Cláudio Lino, Fabius, Jaime Além, Claudio Lacerda, Marcelo Pretto, Julio Santin.
Lembrando o texto no encarte, por Ivan Villela, “a sonoridade de Osni vem atualizar a importância do cantar e tocar no cotidiano das pessoas”. Ou seja, não importa onde estejamos, o que importa são os valores que carregamos conosco, que estão em nossa gênese.
Embora o destino universal das comunidades seja o gradual afastamento – rápido ou gradual, contudo, inexorável - dos campos e da natureza idílica rumo às cidades, os valores que permeiam a vida e nos guiam nas rotas desconhecidas, permanecem inalterados: a fraternidade, o amor, o respeito a natureza, a religiosidade e especialmente o hábito de prosear, talvez o mais antigo da humanidade e que a correria dos tempos modernos faz a maioria das pessoas esquecer. “Arredores”, o próprio sugere, lembra que o caipira já não vive mais na solidão ignota de sua casinha na beira ou do meio da mata: o caipira de hoje mira e conhece e busca conectar-se aos “arredores, sejam os próximos à sua moradia ou os “arredores do mundo”, dado o encurtamento de distâncias.
Não raro o caipira habita a própria capital e suas periferias, tangido do campo. Os citados valores – amor, natureza, religiosidade, tradição, festejos populares, etc. – são lembrados pelo violeiro, cantador e compositor ao longo do CD, porque são nossa raiz, berço imortal de nossa alma que o inconsciente coletivo que molda e forma a cultura brasileira há de fazer permanecer para sempre.
“CLAREANDO”, DE EMILIANO PEREIRA
O curitibano Emiliano era até o inicio deste ano um ilustre desconhecido do autor dessa missiva, quando fui presenteado por uma amiga residente no ilustre estado do Paraná. Até então, meus conhecimentos dos violeiros paranaenses se limitavam a Rogério Gulim e o pessoal do grupo Viola Quebrada, além de pouquíssimo conhecimento dos grupos fandangueiros do litoral paranaense.
Chamou a atenção na musica de Emiliano Pereira a abundância de referências tanto de ritmos brasileiros quanto do rock, guarânia paraguaia, citara indiana. (Teria eu ouvido ecos de Asa Branca na faixa Baião da Lua, que por sua vez faz lembrar os romances ou rimances da viola sertaneja de Adelmo Arcoverde?)
A musica de Emiliano presente neste disco de estréia não é festeira, embora em muitos momentos a festa se faça presente. Predomina a reflexão, certa nostalgia. O autor parece-me um atento viajante, daqueles que assuntam em silêncio e em seguida expressam suas impressões em acordes violeiros, convidando generosamente para emoldurar tais impressões outros instrumentos e instrumentistas.
Emiliano recorda lugares, momentos, ritmos e histórias colhidos nas suas solitárias caminhadas, seja nos arredores de sua aldeia ou em terras distantes (chamou-se atenção a guarania “Recordações de Irapurú”, cidade que eu freqüentava na infância, vivida no Pontal do Paranapanema. Seria desta mesma Irapurú, cidade natal do violeiro Julio Santin, que fala o violeiro Emiliano?). A dolência nostálgica de outros temas remetem, quiçá, viagens ao interior de si mesmo, memórias ancestrais intuídas pela alma poética do artista.
UM VIOLEIRO DE CÁ, OUTRO DE LÁ
Não sei se Emiliano e Osni se conhecem. Na verdade, essa informação não é relevante, no presente caso. Também devo dizer que juntar os dois numa única resenha não o foi de modo aleatório ou por mero acaso. Espero que um dia os dois se juntem num palco e quando isso acontecer, tenho pra mim que será uma bela violada, da mesma forma como há talvez milhares de anos, nas noites dos desertos do Oriente Médio as caravanas de mercadores se encontravam e juntavam seus instrumentos e assim se compreendiam.
Por curiosidade revelo que os dois CDs chegaram às minhas mãos praticamente ao mesmo tempo e por isso, no triz de um momento, recordei do fato histórico em que São Paulo e Paraná formavam uma única provincia. Dei-me conta de que, graças às diferenças perceptíveis ao ouvinte atento, a musica sincera e singela, brejeira, simples e também sofisticada, é para se ouvir ao amanhecer e ao entardecer, alternadamente, adequando-se a cada dia, o estado de espírito decorrente.
Ao fim e ao cabo, o constatar que a música desses dois violeiros não se restringem ao universo caipira. Aqui, a cultura caipira trava interessantes diálogos com outros mundos de perto e de longe e assim se amplia, se amplifica: faz chegar a nós, felizardos ouvintes dessa arte maravilhosa, ressonâncias esquecidas e outras mais, desconhecidas.