VIOLAS AO SUL


Uma boa nova nos chega do Sul do Brasil, mais exatamente do Rio Grande. Trata-se do grupo  “Violas ao Sul, composto  pelos violeiros Oly Jr., Valdir Verona, Angelo Primon e Mário Tressoldi. 

 A formação desse grupo, cujos componentes tem sólida e erudita formação,  reflete uma tendência das últimas décadas, onde a viola caipira, de dez cordas, comumente também chamada “viola brasileira”, vem angariando grande importância tanto junto ao publico em geral, mas sobretudo junto aos especialistas musicais. A viola caipira desde algum tempo tem a honra de compor cátedras universitárias, como é o caso da UNICAMP, em São Paulo, com Ivan Vilela e no Conservatório de Pernambuco, com Adelmo Arcoverde. O universo sinfônico é a próxima etapa, já existindo peças compostas exclusivamente para viola caipira e orquestra, sem contar o universo da musica pop e do rock – vide o trabalho de Ricardo Vignini – e mesmo na música experimental, como acontece com a francesa Fabienne Magnant, que se apresenta nos palcos europeus como violeira e guitarrista, tendo já incorporado o instrumento à sua musica autoral.

O mais curioso no grupo Violas ao Sul é que o elemento principal, o enigma que resulta em coesão e harmonia, é justamente o principal elemento que os distingue entre si, ou seja, as explícitas diferenças de estilo, perceptíveis em cada faixa. Entretanto, existe como que um encadeamento temático, resultando ricos diálogos musicais. “Violas ao Sul” tem momentos jazzísticos e outros que lembram as origens remotas do instrumento, ecos barrocos e medievos.
Cada um deles tem carreiras solos recheadas de importantes realizações e cada um dos quatro pertence a uma região distinta:
- Valdir Verona, natural de Caxias do Sul, violeiro, compositor, pesquisador, concertista. Atua em várias frentes com inúmeros parceiros, como o acordeonista Rafael De Boni e o poeta Juarez  Machado de Farias;
- Angelo Primon, bacharel em musica pela UFRGS, compositor, produtor, pesquisador que busca confluir as sonoridades de instrumentos populares de muitas partes do mundo e de épocas remotas: viola capira, viola-de-cocho, oud árabe, sitar indiana;
- Oly Jr., de cuja viola dinâmica extrai o lado “bluseiro” da viola através da técnica slide, fundindo blues e milonga – a propósito, as paisagens são parecidas, seja a monotonia dos desertos ou a paisagem rural norte-americana,  e a inconfundível paisagem pampeana, que vai muito além do ritmo consagrado por Atahualpa Yupanqui. A milonga pode simbolizar a própria alma do pampa, resistente às intempéries trazidas pelo minuano, o vento gelado vindo do sul do planeta e que desliza pelas paisagens sem fim;
- Mário Tressoldi, arranjador, produtor, também bacharel em musica pela UFRGS, cujas pesquisas são voltadas à cultura do litoral norte sul-riograndense.
O trabalho dos quatro, seja o coletivo que resultou na formação desse intrigante grupo ou o individual que cada um elabora, de algum modo mapeiam parte da grande musicalidade gaúcha, um rico universo pouco reconhecido no resto do país, mas que vibra a pleno vapor nas bandas do extremo Sul. Quem acompanha o programa “O Sul em Cima”, produzido por Mariusa Kineuchi  e apresentado por Kleiton Ramil, voltado à musicalidade gaucha, sabe da presença viva, da efervescência dos diversos matizes que compõe um estrato cultural variadíssimo e da produção incessante de artistas com pés fincados na tradição e com olhar voltado ao futuro.




“Violas ao Sul” pode ser considerado um breve recorte a ser apreciado sem moderação, pois abre muitas portas. Os quatro, nesse disco de estréia, apresentam-se tais como são e configura-se espantoso  como elementos de rara beleza se formam a partir do contraste, da diferença. Por vezes na linguagem rude e simples do homem do campo – como na faixa inicial, “Violas do Sul do Brasil”, onde contam, como se fosse numa moda-de-viola paulista, a simples narrativa da introdução da viola caipira nos campos sulistas;  ora composições  complexas como “Solar Nº 1” ou o improviso “Milonga de Arame”; ou nos surpreendermos com a dança de terreiro belissimamente arranjada, “Contrapasso/Seu Bugio”; ou os folguedos festeiros  como “Chacarera entre Amigos”, “Chamamé Blues”  ou a esfuziante  Jam session, “10 de Fole”.



“Violas ao Sul” por outro lado retoma uma tradição brasileira que teve seu ponto alto em meados dos anos 1970, entrando pelos 1980: os variados grupos musicais, vocais e instrumentais que proliferaram por toda parte, livres e ousados misturando elementos do rock, da musica pop, do baião e dos sotaques regionais de cada um deles. Bendegó ; Sá, Rodrix & Guarabira;  Almondegas, Som Imaginário, O Terçp, Ruy Mauriti Trio, Quinteto Violado são os exemplos mais conhecidos, sem falar no grupo informal que levou o nome genérico de Clube da Esquina, resultante dos encontros dos jovens Milton Nascimento, Ronaldo Bastos, os irmãos Lô e Mácio Borges,  Flavio Venturini,  Toninho Horta, Beto Guedes, Tavinho Moura e outros que seguiam viagem num mesmo trem onde, em cada estação se juntava e se ouvia uma “alegre zueira” na feliz expressão de um dos integrantes do Clube da Esquina, muitos anos depois.  No Clube da Esquina tinha de tudo e do melhor: Luiz Gonzaga, Beatles, Congadas, Violas, Rock , arranjos orquestrais. 

Conhecer e re-valorizar nossa arte musical tem tudo a ver com o momento de incerteza que vivemos. É um momento mais grave do que podemos perceber na superfície. O mais grave são muitas divisões e tinturas supostamente ideológicas procurando se afirmar de modo a acentuar  e alargar fossos sócio culturais, que noutros momentos de nossa recente história, julgávamos ter superado: nossa identidade enquanto brasileiros está sendo posta em xeque de tal forma que o “vencedor” (ou qualquer coisa que se chame “vencedor” no mundo da fantasia neoliberal) ao fim e ao cabo terá mãos vazias. O momento é de reafirmar em cada um de nós o que somos e temos de melhor. A musica, a arte de modo geral pode ser um importante elemento de intersecção num momento em que todos procuram gritar mais alto. “O grito, dizia Ortega y Gasset, é o preâmbulo sonoro da agressão, do combate, da matança”.  
Nosso momento é o momento de repensar o que somos a partir do que temos e do que sabemos fazer melhor e assim descobrir que a diferença, o contraste deve nos unir, não separar; faço minhas as palavras de Mario Tressoldi, na canção “Sabor Litorâneo”:
“(...)
Mexe que mexe a panela
Bem temperada com a vida da gente
Receita que leva amor
Tem sabor litorâneo de passado e presente
(...)
(...)
Sabores típicos da gente da minha terra
Afro, açoriano, índio, luso, brasileiro
Miscigenado entre mar, lagoa e serra.”

A musicalidade resultante desse recorte que os quatro representam é muito mais do que musica voltada ao entretenimento dos nossos ouvidos – o que já estaria de bom tamanho, dado o talento e a técnica primorosa de cada um. O melhor que fazem é que, pouco importa se o ritmo escolhido é um tradicional gaúcho (milonga, chacarera) ou um algo que lembre a viola caipira do profundo interior de São Paulo ou um blues, o “sotaque” gauche é perceptível, onde quer que se ouça;  em qualquer parte do mundo se saberá: são gaúchos nessas violas! Ou seja, a musica deles encontra pleno respaldo na alma gaúcha, o que talvez venha a contrariar os puristas de lá ou de cá, aqueles  que buscam a separação, a qual, se levada a cabo, viria a “desalmar”, consequentemente, empobrecer ou até se extinguir pelo isolamento forçado pelas supostas ideologias (digo supostas, pois lhes falta lhes falta o elemento primordial, a “tradição”, a” alma”).  Os movimentos separatistas, que dos mesmos  volta e meia se tem noticias, alimenta-se ilusão, sem  eco na verdadeira alma gaúcha, de natureza  gregária, tal como cantou certa vez Noel Guarani:  “...indios, gringos e mestiços!”
Ouvindo o CD “Violas ao Sul”, as surpresas  surgem à cada curva, como o deslizar por uma estrada sinuosa, com aclives e declives – o que nos obriga a estar sempre atentos – e vislumbramos  amplos cenários, que abrange desde os extensos e monótonos campos pampeanos,  o litoral e enfim  os vôos rasantes pelos  penhascos da região da Serra Gaúcha.
A musica e os folguedos, a cultura praticada pelos povos  em geral ignoram os limites políticos, tornando as fronteiras entre os países da região – Paraguai, Uruguai, Brasil e Argentina – um caso único, onde se situa sobreira a  geografia “gaúcha”. A terra gaúcha é uma cena aberta, por cujas  paisagens  sempre foi facilitada ao amplo transito, seja da vida pastoril ou das guerras ao longo da história).
A “Alma gaúcha” está presente, amalgamada à “alma” brasileira, latina, dos campos e das cidades, os muitos povos tem mais em comum que a língua, tem histórias e destinos comuns, apesar dos inúmeros dialetos e da  extensa variedade de povos.

No momento atual da musica e da vida brasileira, podemos dizer  que, caso chamados a um festival Internacional qualquer, o grupo “Violas ao Sul” poderiam ser chamados representantes do Estado do Rio Grande do Sul. E também representantes do Brasil, pois, cada um deles, delineia aspectos distintos  do uso da viola caipira, esse instrumento tão marcadamente brasileiro:  viola caipira, viola brasileira, viola de dez cordas. Importa frisar que os quatro estilos distintos refletem os muitos caminhos percorridos pela viola nos rumos do Sul, levada que foi por mãos de missionários jesuítas, tropeiros da região sudeste e açorianos.




ARAUCANA & ESPIRAIS EM AQUARELA

Como num complemento do que foi dito acima a respeito  da rica musicalidade existente no Sul do Brasil, vale conhecer o grupo Araucana, aproveitando esse raro momento que a musica do Sul é posta em evidência  – parodiando o Programa O Sul Em Cima, produzido por Mariusa Kineuchi e apresentado por Kleiton Ramil.
Seu disco  “Espirais em Aquarela”- acredito que seja de estréia – é uma alegre mistura, onde o antigo, o tradicional , a musica urbana, cosmopolita e universal se aqui se encontram:

Nina Fioreze (voz)
Rafael De Boni (acordeon)
Mauricio Kehrwald (violão)
Matheus Mussatto (bateria)
Carlos Balbinot (guitarra e programação)
Lucas Chini (baixo)

...é um grupo que se poderia dizer ser encontrável como tantos, em qualquer lugar do mundo, um grupo “tradicional”, tipicamente urbano e cosmopolita, voltado, digamos, a um mercado curioso por novidades, um som diferente, como se diz.
Mas não é como um outro qualquer porque tem forte identidade “gaúcha”, regional. As musicas, executadas alternadamente em português e castelhano, dão uma idéia do vivo colorido social da região, ao mesmo tempo universal e local. É um diálogo divertido e criativo com o resto do mundo, revendo aspectos do que acontece aos corações e mentes em algum lugar do mundo, a todo instante... “Espirais em Aquarela” pode ser uma carta, um recado, um bilhete aos terráqueos do futuro!




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