Esteve em cartaz por poucos dias no CineSesc, em São Paulo,
o documentário “ Adoniran – Meu Nome é João Rubinato”, contando a vida de um
dos maiores artistas do Brasil, tornado símbolo de São Paulo.
Cartaz do filme
Considerado “sambista”, Adoniran era muito mais que compositor e
cantor de sambas. Artista completo, foi atuante no radio. No teatro e no cinema,
foi subutilizado. E suas habilidades como artesão estão para serem conferidas
na apreciação de seu acervo, trancados e cobertos de pó numa sala na Galeria do
Rock, na rua 24 de Maio. Onde estaria o Mecenas, ou alguma instituição se daria
ao trabalho de cuidar, preservar, expor ao público o valioso acervo de Adoniran
Barbosa?
Miniaturas feitas por Adoniran
Adoniran trafegava o mundo das artes com tanta propriedade e
segurança, com verdadeiro conhecimento de causa, que afirmava, sem qualquer
exagero ou mania de grandeza (algo que ele efetivamente não tinha) que o samba
paulista era tão bom quanto o carioca, algo que dito por outro provocaria riso
nos cariocas que diziam ser São Paulo o túmulo do samba. Sem dúvida foi o
responsável pela afirmação do samba paulista, reconhecendo/redescobrindo nele a
arte genuína brotada do meio do povo simples, mas forte e singelo, o
lirismo cultivado nas festas populares.
O documentário, embora tenha muitas passagens inéditas,
recolhidas do acervo da família de Adoniran – morto em 1982 – grande do
material mostrado é conhecido. Mas tem novidades saborosas e importantes no
depoimento de artistas, amigos, familiares, além de curiosidades mais a gosto
de especialistas em sua obra, como uma versão de “Trem das Onze” em italiano
chamada “Figlio Único”, de um certo Riccardo Del Turco, que fez a fortuna do
mesmo Turco, fortuna essa a qual Adoniran ou seus herdeiros devem ter tido
acesso quase nenhum...
O grande mérito do diretor e roteirista Pedro Soffer Serrano
foi alinhavar o grande mosaico da vida de Adoniran numa montagem ágil, formando
um todo coerente, sem obedecer rigorosamente à cronologia dos eventos – afinal,
não é uma obra cientifica, e sim artística. (Adoniran deveria ser o primeiro a
não desejar uma biografia que retratasse uma sonolenta descrição dos fatos de
sua vida).
Os episódios principais da vida de Adoniran foram tratados
com a mesma leveza com que Adoniran tratava em seus sambas os fatos gravíssimos
das populações pobres de São Paulo, moradores de cortiços e favelas, que a
principio poderiam ser tomados por engraçados ou mesmo resignação como em
“Saudosa Maloca”:
(...)
“Mas um dia, eu nem
quero me alembrar
Veio o homem com as
ferramentas
E o dono mandou
derrubar
Peguemo todas nossas
coisas
E fomos pro meio da
rua apreciar a demolição
Só se conformemo
Quando o Joca falou
Deus dá o frio
Conforme o cobertor
(...)
Que se há de fazer?”
. O retrato de Adoniran no documentário nada tem de
rebuscado, é desenhado com a mesma simplicidade do personagem, sem retoques ou aprofundamentos
desnecessários e/ou complicados, permitindo, dessa forma, que o expectador
elabore ele mesmo a interpretação que melhor condiz com seu ponto de vista. Destaque para o comovente encontro com
Elis Regina, os dois passeando de braços dados pela cidade, cena singela,
demonstrando em simples gestos e sorrisos sem palavras a admiração e o respeito
mútuo. No decorrer do filme, na maior parte das vezes, é o próprio Adoniran ou
seus amigos, parceiros e familiares quem dão as melhores pistas para conhecer e
compreender sua vida e obra.
Adoniran e Elis
Pedro Serrano, diretor e roteirista
Apaixonado pela cidade e por seu povo, certamente ficaria
feliz com os cartazes abaixo, que representam por si, sua afeição pela cidade
que foi o tema de sua vida:
Os discos, a carreira (ou as carreiras, considerando sua
atuação artística multifacetada no rádio, teatro, cinema e musica, além das
muitas profissões que exerceu na vida) também serve de crônica de época, embora
se possa considerar que os temas tratados por ele sejam atemporais uma vez que
o tratamento dado às classes menos favorecidas geralmente servem de pano de
fundo para massa de manobra do/s governante/s da vez. São Paulo é uma cidade de
transformações radicais e constantes.
Desde a cidade provinciana dos séculos XVIII e XIX, passando
pelos casarões do espigão da Paulista, dos palacetes da Bela Vista ou das vilas
operarias do Brás e da Mooca até a explosão dos arranha-céus, São Paulo muda
constantemente. A São Paulo de Adoniran Barbosa, que já se modificara bastante
desde seu surgimento no cenário artístico, mudou muito embora tenha se passado
“apenas” menos de quatro décadas desde sua partida. No seu tempo, as pessoas
mais velhas – incluindo o próprio Adoniran, que falou a respeito muitas vezes
– tinham medo de viajar de metrô. Hoje
em dia é o oposto, são os outros meios de transporte que dão medo. As relações
humanas de seu tempo eram mais próximas, havia no geral mais camaradagem – (embora
exista, ainda, em certos meios, em alguns bairros, lugares onde estranhos
conversam animadamente como se fossem velhos conhecidos. Contudo, são episódios
raros, no geral o interesse individual ou corporativo predomina). Pergunto, se
nos dias de hoje seria possível para Adoniran o cochilo diário, às tardes, que
ele realizava no sofá da Radio Eldorado... Aliás, a própria ida solitária ao
estúdio da rádio, segundo o documentário aborda em certas passagens, já era um
sintoma da solidão que o acometia: ia à radio tentar reencontrar amigos e
sentado sozinho no sofá, acabava dormindo. Mesmo que a soneca não fosse por
causa da solidão: os produtores de hoje em dia – se existisse a emissora –
permitiriam que aquele “velho decadente” dormisse em seu espaço de trabalho?
Dúvida insanável: pode ser que sim. Ou não. Se existe uma característica de São
Paulo são as surpresas imprevisíveis, uma aura de humanismo e acolhimento
parece fazer parte do DNA da cidade. Eis um dos mistérios de “ser-tão
paulistano”, não por acaso o feliz título deste blog... A atuação do cronista
de época Adoniran pode ser vista sem retoques no samba “Acende o Candieiro”:
(...)
“Acende o candieiro
Ó nega
Alumeia o terreiro
Ó nega
Vai avisar o pessoal
Que hoje vai ter
ensaio geral
Vai depressa Maria
Antes que fique tarde
Daqui a pouco escurece
Não dá pra avisar
ninguem
Na volta não esquece
De falar com dona
Irene
E passar pelo armazém
Trazer um pacote de
vela
E um litro de
querozene.
(...)
Velhos tempos onde os ensaios de samba nos terreiros das casas
eram realizados sob a luz de lampiões (candeeiros) à querosene ou mesmo a luz
de velas; na comovente homenagem ao “Viaduto Santa Efigênia” é o observador arguto, atento ao
que se discutia na cidade que se faz presente.
Apesar de os principais eventos de sua vida e carreira serem
conhecidos, podemos considerar que Adoniran Barbosa, nome artistico adotado por
João Rubinato, é um enigma a espera de ser decifrado, e sobre o qual até hoje
pouco se discutiu a respeito. O documentário de aslgum modo lança algumas luzes
a respeito, mas como toda boa obra de arte, nada conclui. Alguém já se
perguntou por que ele era compreendido e amado por todas as classes sociais?Suas
letras e sua prosa, sua vida, tudo relacionado a ele é compreendido facilmente
por qualquer criança. Entretanto, o leifmotiv,
o que o movia, o modo como descrevia as tragédias fazendo-as soar
“engraçadas” e desse modo, tornando-as palatáveis aos ouvidos revela um
Adoniran sobre o qual muito pouco se sabe e só um arguto observador da alma
humana, um Dostoiévski, seria capaz de desvendá-lo...
Do operário ao executivo, da empregada domestica à dona de
boutique, quer gostasse ou não de sua
música, era inegável compreensão imediata. Fato é que ninguém ficava insensível
ou indiferente à sua Arte - com “A” maiúsculo.
Dada a sua importância – ainda não foi devidamente analisada
– podemos perguntar: quem era verdadeiramente Adoniran Barbosa, que como outro
grande artista popular do continente americano, ocultava-se num pseudônimo que
se confundia com o próprio: Atahualpa Yupanqui, que ninguém jamais tratou por Hector
Roberto Chavero, seu verdadeiro nome. Mas a coincidência entre esses dois
monstros sagrados da musica popular das Américas fica por aqui. Ambos atuavam
em searas distintas, apesar utilizarem largamente em suas obras o apelo
genuinamente popular.
Atahualpa Yupanqui/Hector Roberto era certamente um
intelectual, estudioso do folclore de sua terra, escreveu livros, tinha uma
atuação política clara e consistente sobre a qual nunca deixou nenhuma dúvida.
O nome Atahualpa refere-se a um antigo imperador inca; Adoniran Barbosa foi o
nome artístico escolhido por João Rubinato para homenagear um colega de boemia
de nome Adoniran e o sambista Luiz Barbosa e não consta nenhum envolvimento seu
com política partidária. Entretanto, poderia ser considerado antropólogo,
sociólogo, jornalista, cronista, psicólogo, poderia ter recebido inúmeras
condecorações honoris causa pois seus
“estudos” agudos das condições de vida das classes urbanos menos favorecidas eram
objetivos e concisos, mergulhando fundo nos sentimentos e na vida paulistana,
trazendo à tona de modo extraordinariamente explicito algo que um “estudioso”
de cátedra levaria centenas de páginas só para tentar classificar. Os versos
abaixo poderiam servir epígrafe de um estudo sobre as condições alimentares da
população paupérrima:
“Pobre quando come
galinha
Ou ele ta doente
Ou a galinha...”
O Adoniran que se ocultava sob a máscara sobre o “italiano”
João Rubinato (ou vice versa!) era antes de tudo, um artista. Nunca almejou ser
intelectual, seus “estudos” formais não devem ter ido além de alguns anos do ensino
fundamental. Não estudou, por muitos motivos, entre eles a necessidade de
trabalhar. E desde os primeiros anos de uma sofrida existência, especializou-se
na arte de viver. E sobreviver. Escarnecia do sofrimento, como se fosse
indiferente ao mesmo, mas na verdade, não era indiferente; nem ao seu próprio,
nem ao alheio, pois por baixo do tom
aparentemente jocoso outras realidades se apresentam com uma clareza
estonteante. Que dizer da espantosa e trágica (engraçada?) descrição de uma reintegração
de propriedade, em “Despejo na Favela”, um de seus sambas mais conhecidos? É um
“fenômeno” que até os nossos dias se repete, suas palavras poderiam ser
pronunciadas ainda hoje, reflexo de uma megalópole de crescimento desordenado e
caótico, que não conseguiu, nem de longe, resolver o problema da habitação,
permanentemente convivendo com a eterna especulação imobiliária. São Paulo é
uma cidade onde falta e ao mesmo tempo sobra lugar para morar, com centenas de
prédios vazios, centenas de terrenos vazios, e paradoxalmente, barracos se
acumulando, famílias vivendo em exíguos e insalubres espaços:
(...)
“Assim dizia a petição
Dentro de dez dias
quero a favela vazia
E os barracos todos no
chão...
(...)
..é uma ordem superior”
(...)
..é uma ordem superior”
...e mais adiante:
Pra mim não tem
problema
Em qualquer canto me
arrumo
De qualquer jeito me
ajeito
Depois o que tenho é
tão pouco
Que cabe no bolso de
trás
Mas, e essa gente aí,
Como é que faz?
As ordens de reintegração de posse, que acontecem
cotidianamente na cidade, como diz o despacho, atendem a “uma ordem superior”.
Ou seja, é uma "ordem" vinda do Alto, umas ordem determinada pelas Alturas Insondáveis, "algo" acima do questionamento dos homens normais.
Ao homem comum, ao mortal comum, não é permitido questionar, apesar da “Constituição Cidadã”, de 1988.
“Despejo na Favela foi escrito em 1969, mas poderia ter sido escrita no próprio ano de 1988. Ou hoje.
Ao homem comum, ao mortal comum, não é permitido questionar, apesar da “Constituição Cidadã”, de 1988.
“Despejo na Favela foi escrito em 1969, mas poderia ter sido escrita no próprio ano de 1988. Ou hoje.
O menino João Rubinato, filho de imigrantes italianos da
região de Veneza aprendeu a viver e a sobreviver, como exposto alguns
parágrafos atrás. Algum verbete sobre ele em alguma publicação o pode qualificar
como humorista, por conta de alguns
personagens que interpretou ao longo da vida, especialmente Charutinho, de sua época do rádio. Mas o
que pulsava em cada célula, desde o entregador de marmitas, o empregado de loja
da região da rua 25 de Março, o funileiro, o balconista, vendedor ambulante de
meias e outras atividades de sobrevivência, sempre nos intervalos do trabalho
buscava a companhia dos artistas, pois representar para ele sempre foi uma
segunda natureza. Possivelmente a “arte” fosse, desde sempre, a estratégia de
fuga de uma existência que de outro modo seria amarga. Talvez nem tivesse plena
consciência disso, era simplesmente sua forma de se expressar, de relacionar-se
com o mundo. Todas as formas de “palco” seriam seu habitat natural, neles se
sentia perfeitamente a vontade: radio, teatro, cinema e naturalmente a musica,
eram para ele como o “ar” que respirava entre baforadas de cigarro e goles de
cerveja.
A Arte para Adoniran nem é sua segunda natureza, é sua natureza
por inteiro; sempre compreendeu, como que por instinto, que a versão
“verdadeira” de um fato nem sempre reproduz a integralidade desse mesmo fato. É
a versão de João Rubinato para famoso aforismo “se a lenda for mais forte que o fato, imponha-se a lenda”,
atribuído ao cineasta John Ford durante as filmagens do clássico western “O
Homem Que Matou o Facínora”. Para Adoniran o que contava era a versão que
fizesse sentido. Como os grandes criadores, não teve problema nenhum em
consagrar um “Trem das Onze” quando se sabe que o mesmo nunca existiu (na
época, o último trem para o Jaçanã partia as 19 horas, mas como ele mesmo
comentou certa vez, “não fazia o menor
sentido um boêmio ir para casa as sete da noite...). Não resta dúvida: o
Trem das Onze é muito mais real que o das sete da noite! Igualmente revelador é
o depoimento, no filme, de Carlinhos Vergueiro para a composição de ambos,
“Torresmo à Milanesa”, algo que rigorosamente não existe. Ou melhor, existe, soa
como paráfrase ao desejo do operário de degustar um chique “Bife a Milanesa”. Ora,
sonhar com Bife não tem graça, transcendência delirante é tornar o Torresmo...
à milanesa! (Mas o torresmo, ele confessa ele ao parceiro Carlinhos, “ é triste...”) Portanto, por trás da galhofa,
a tristeza. Tristeza que ele tratava como sua parceira inevitável, na música
que foi arranjada para cordas orquestrais: “Bom Dia Tristeza”.
Em todas as suas entrevistas, sempre fazia questão de
ressaltar que suas composições, seus
sambas, eram todos verdadeiros. E o
eram efetivamente, desde o enredo, os
nomes dos personagens, os lugares, todos são verdadeiros, pouco importa as muitas versões que se conheçam de
suas inspirações. Assim, existem pelo menos duas versões para a composição de
Iracema: desde a mulher que o rejeitava até a da noticia de jornal que
descrevia a trágica noticia de uma mulher pobre atropelada ao tentar atravessar
a Avenida São João, alardeada por ele mesmo. As duas versões são de fato
“verdadeiras”. Fantasia ou veracidade, pouco importa; o que conta mesmo é o
rosto que ganha forma a partir do anonimato. A imaginação do artista mergulha
fundo no tecido social, dando voz à pobre mulher atropelada no transito
caótico. Poderia ser a criança abandonada, o pobre morador do cortiço, o negro
ou mulato pobre perseguido. Mesmos as mulheres fúteis (Triste Margarida, As
Mariposas) tem vez, consagram-se em sambas imortais. Samba paulista, quem
diria! Samba paulista que para ele nada deve ao samba carioca. Nada deve porque
tem raiz, é mais que performance musical, é força de expressão, de lugar, de
estado de espírito. O samba de Adoniran é antes de tudo, um jeito de ser; pode
ser até Italiano, antecipando em décadas o grupo Mamonas Assassinas
e seu linguajar carcamano, dito
pejorativo para o estrangeiro, notadamente o italiano pobre – espécie de
caipira citadino.
Como poderíamos compor um esboço do artista em seu "laboratório ou gabinete de trabalho"? Ora, seu "gabinete" de trabalho era a rua, jogando e ouvindo "conversa fora". As falas e os dramas das gentes simples, eram sua matéria prima. Como a maioria dos genios populares, ele nunca teve controle sobre sua obra. Há um sem numero de composições atribuídas a ele. Há muitos anos o musico Passoca lançou o album "Inéditos de Adoniran Barbosa", cuja autenticidade nunca foi comprovada oficialmente. Contudo, mesmo que não sejam autenticas, tem o mérito de suscitar interesse pela sua obra, sua presença, sua importancia para a cultura paulistana. O mérito de Passoca, por isso, é enorme - repito, mesmo que não sejam autenticas as composições - pois são obras que sem dúvidas gravitam em torno de Adoniran, conduzidas por um artista com grande familiaridade e afeto pela cidade. Desconheço se "Os Demonios da Garoa" conhecem a obra de Passoca. E composições de Adoniran, ao menos extraoficialmente, devem sempre passar pelo crivo do grupo que imortalizou suas criações. Eles, Os Demônios da Garoa, eram sempre os primeiros a tomar conhecimento de suas novas composições - a não ser que tenham surgido num momento de atrito entre eles.
Recentemente a cantora, compositora e produtora, Consuelo de Paula, revelou em suas apresentações uma melodia inédita de Adoniran Barbosa e seu parceiro Copinha, que lhe fora enviada por um admirador de ambos. Sobre a melodia, Consuelo escreveu uma belissima letra, a qual chamou "Valsa Para Matilde". Matilde, como sabemos, foi sua companheira por mais de 40 anos. Tudo o que podemos assegurar é que a parceria entre Adoniran e Consuelo, é muito provável, um milagre do espaço/tempo os reunindo. Ele tinha muitas faces e "Valsa Para Matilde" poderia ser uma delas, sem a menor dúvida. Na voz da cantora mineira, podemos vislumbrar o sorriso matreiro do velho Adoniran, aprovando.
Como poderíamos compor um esboço do artista em seu "laboratório ou gabinete de trabalho"? Ora, seu "gabinete" de trabalho era a rua, jogando e ouvindo "conversa fora". As falas e os dramas das gentes simples, eram sua matéria prima. Como a maioria dos genios populares, ele nunca teve controle sobre sua obra. Há um sem numero de composições atribuídas a ele. Há muitos anos o musico Passoca lançou o album "Inéditos de Adoniran Barbosa", cuja autenticidade nunca foi comprovada oficialmente. Contudo, mesmo que não sejam autenticas, tem o mérito de suscitar interesse pela sua obra, sua presença, sua importancia para a cultura paulistana. O mérito de Passoca, por isso, é enorme - repito, mesmo que não sejam autenticas as composições - pois são obras que sem dúvidas gravitam em torno de Adoniran, conduzidas por um artista com grande familiaridade e afeto pela cidade. Desconheço se "Os Demonios da Garoa" conhecem a obra de Passoca. E composições de Adoniran, ao menos extraoficialmente, devem sempre passar pelo crivo do grupo que imortalizou suas criações. Eles, Os Demônios da Garoa, eram sempre os primeiros a tomar conhecimento de suas novas composições - a não ser que tenham surgido num momento de atrito entre eles.
Recentemente a cantora, compositora e produtora, Consuelo de Paula, revelou em suas apresentações uma melodia inédita de Adoniran Barbosa e seu parceiro Copinha, que lhe fora enviada por um admirador de ambos. Sobre a melodia, Consuelo escreveu uma belissima letra, a qual chamou "Valsa Para Matilde". Matilde, como sabemos, foi sua companheira por mais de 40 anos. Tudo o que podemos assegurar é que a parceria entre Adoniran e Consuelo, é muito provável, um milagre do espaço/tempo os reunindo. Ele tinha muitas faces e "Valsa Para Matilde" poderia ser uma delas, sem a menor dúvida. Na voz da cantora mineira, podemos vislumbrar o sorriso matreiro do velho Adoniran, aprovando.
O documentário confirma, em muitas passagens, depoimentos esparsos que ouvimos em outras ocasiões, onde ele, demonstra plena confiança do valor de seu trabalho. Era o artista com controle completo de sua criação. Cada frase, cada trejeito, cada sotaque, tudo era cuidadosamente estudado para dar sentido ao conjunto. Ele próprio ensina numa entrevista que “é preciso aprender a
falar errado”. Ora, o seu "falar errado" é perfeitamente condizente como uma espécie de licença poética: fala errado no "Samba do Arnesto" e um português perfeito em "O Casamento do Moacir". Aprender “falar errado” (ele afirmou isso categoricamente) parece-me ser a estratégia possível, o recurso de linguagem possivel na realidade circundante: uma clara aplicação da Pedagogia do Oprimido, que o educador Paulo Freire poderia ter muito a dizer: “Falar errado” para retomar o diálogo, que de outro modo seria vazio ou sem sentido
Como nas boas anedotas, onde a pilhéria pode dividir espaço
com as narrativas trágicas; ou como nos melhores causos, que sempre encerram profundas reflexões de ordem moral/ética,
Adoniran está definitivamente entronizado na memória e na história de São Paulo
como o cronista que melhor descreveu a vida paulistana com o olhar do homem da
rua. Foi o nosso flaneur.
Consagrado pelo
povaréu, de quem entendia as agruras e as alegrias, respeitado pelos bambas,
como o maestro João Carlos Martins, que sempre o homenageia ao final de suas
apresentações à frente a Orquestra Heliopólis, no desenrolar desse pequeno
texto, o enigma em torno de Adoniran Barbosa deve ter saído maior do que uma
solução. O mistério em torno dele permanece. Afinal, ele é cômico ou trágico?
Suas desconcertantes descrições e/ou análises encontradas em suas músicas (o
duplo sentido de “Apaga o Fogo Mané”, onde a mulher sai para comprar um pavio
de lampião, não volta e depois de procurar por toda a cidade, encontra um
bilhete de despedida ou o polígamo Moacir, de “O casamento do Moacir”).
Qual o espirito de suas composições, que ao pé da letra poderiam se converter em enigmáticos tratados? Tristezas,
que ao sabor de uma linguagem premeditadamente jocosa do samba se transmutam em
alegrias? Ou a piada é apenas aparente, permanecendo no fim das contas, um
coração a sangrar, solitário. Adoniran Barbosa é o nosso Charles Chaplin. Esse
traço, do palhaço triste, foi inconscientemente captado por Elifas Andreatto, na famosa capa feita por ele
para o disco em homenagem a seus 70 anos? A propósito desta capa, considerada a
principio um equivoco por Elifas, foi posteriormente considerada pelo próprio
Adoniran como o seu melhor retrato.
O desenho original feito por Elifas Andreato para o disco em homenagem aos 70 anos, que acabou não o utilizando a principio.
O desenho, a principio, para a capa do disco
Uma pista é dada pelo próprio Adoniran no final do filme, onde ele
descreve uma passagem da infância quando entregava marmitas para ajudar no
sustento de casa e durante o trajeto, acossado pela fome, abria algumas das
mesmas e surrupiava discretamente alguns bolinhos de carne. Muito sério, ele
diz:
- Não era sacanagem, era fome mesmo. Necessidade!
É o palhaço retirando a pintura que cobre seu rosto,
revelando sua incontida solidão.
O genial artista, símbolo do homem comum que vagueia nessa
megalópole, que em cada verso, nos mostra
como ser tão paulistano...
O samba O Casamento do Moacir é um exemplo completo, perfeito, da transformação da tragédia numa situação "quase" cômica. Aparentemente ele brinca com a esperteza do bígamo irresponsável com a mocinha que sonhou com o casamento. De fato, o narrador (os "convidados") não "brinca", mas esclarece. Um "causo", onde o espertalhão "dança" e uma tragédia maior é evitada e a "turma da favela" - simbolizada pela noiva Gabriela - se livra de sustentar um malandro. Uma narrativa repleta de conceitos morais, no mais puro sentido ético.