MARCELO TAYNARA: UM SOM E A COR DE MINAS




Marcelo Taynara é conhecido pelo Brasil afora, porém só vim a ter contato com seu trabalho graças ao Projeto Dandô, iniciativa da cantora, compositora, pesquisadora, etc., Kátya Teixeira. Oportuna homenagem ao eterno andarilho da musica e da cultura latino-americana, Dércio Marques, que onde estiver deve estar orgulhoso de sua pupila, matutando com seus botões: “Que menina danada!”

E assim, embora Marcelo Taynara seja uma referência no mundo da criação musical, do público em geral é desconhecido. É nesse ponto que o “Dandô” traz uma contribuição fundamental, um trabalho fundamental que segue o “mapeamento musical do Brasil” dos anos 1970 e 1980 e que lembra, de certa forma, o pioneiro trabalho de Mário de Andrade, nos remotos anos 1930. E já que estamos falando de re-descobertas do Brasil musical, façamos justiça ao pessoal d’A Barca – Trilha, Toada e Trupé, formado entre outros por André Magalhães, Laeticia Madsen, Ari Colares, Chico Saraiva, Marcelo Pretto, Thomas Rohrer. Se esqueci alguém importante, por favor lembrem que acrescento aqui, uma vez que esse espaço é de divulgação

Desde os primeiros tempos do “Dandô” que ouvia falar em Marcelo Taynara. Conhecia de nome. Foram muitas pessoas que me falaram dele, do seu conhecimento de ritmos e gêneros brasileiros. A intensa convivência no meio onde certas práticas religiosas e folguedos tradicionais ainda fazem parte do cotidiano fizeram dele, ao longo dos anos, um fiel depositário da genuína cultura popular e incansável pesquisador. O contato com a obra, entretanto, não acontecia – como ocorre na maior parte das vezes - devido a conhecida dificuldade de distribuição. Embora nas últimas décadas a produção tenha se tornado mais acessível, a divulgação é o “xis” da questão. Não se encontra nas “melhores lojas do ramo”, como se dizia ultimamente. Por vezes o acesso a obra de um artista é uma verdadeira via crucis, e o caminho mais acessível é através de amigos ou em contato direto com o próprio artista – aqui, mais uma vez louvores ao “Dandô”, que busca a aproximação dos artistas e o publico, bem como dos artistas entre si, interligando distantes regiões do país e até do exterior.



Marcelo Taynara e Dércio Marques

Mas, como a justiça tarda mas não falta, era justo que o resultado de todo o seu esforço de produção chegasse até nós. Embora com um atraso de dez anos, pude conhecer seu belo disco, “A Cor de Minas”. E agora, mesmo tardiamente, vamos divulgá-lo por aqui, pois merecemos que essa obra chegue ao público. Merece o artista, merecemos nós, publico ouvinte inconformado. (A lamentar que, numa rápida busca pela internet, não tenha encontrado nenhuma resenha sobre esse disco que, no mínimo, faz jus à tradição mineira da musica de qualidade. Grande parte da música colonial brasileira encontra-se nos sótãos das velhas igrejas das Minas Gerais. O maestro Ricardo Kanji esboçou um projeto de gravar seis ou oito CDs com o material encontrado, mas até onde sei, apenas dois discos foram produzidos. Seria o equivalente brasileiro ao que o catalão Jordi Savall fez com a musica antiga da Espanha desde o século XV. Voltando ao silencio ensurdecedor em torno de um disco como o de Taynara: Por onde andam nossos críticos musicais?)



Devo confessar que o disco, nas primeiras audições, foi uma tremenda surpresa.
Depois de vê-lo cantando ao vivo nas reuniões do Dandô, onde o que chamava atenção era o vigor de seu batuque e forte presença de palco, esperava que o disco viesse repleto de mesma energia primitiva, verdadeira força da natureza, nos moldes de uma Clementina de Jesus ou Mestra Virginia – cuja “Deusa da Lua” pode ser ouvida com o lirismo da voz de Consuelo de Paula e o vigor guerreiro de Katya Teixeira.

A surpresa quando das primeiras audições do álbum A Cor de Minas foi a delicadeza e o lirismo que permeia todo o disco, desde a primeira faixa, quando o trinado doce de uma viola caipira nos convida a um passeio ao entardecer. As 14 faixas do álbum formam um harmônico conjunto de poesia e contra-danças, que ora se entrecruzam, ora correm paralelas. Mesmo quando se evidencia a “pegada” forte como, por exemplo, a faixa que encerra o disco, “Vozes dos Quilombos/Balaindifulô”, torna-se dispensável .qualquer orientação a respeito de onde se ouve as “Vozes dos Quilombos” – atenção para o plural “quilombos”: não é de um determinado quilombo que ele fala, mas dos quilombos em geral.




Embora o disco seja fruto da luta de seu povo ao longo dos séculos de exploração, não é um chamado à guerra, à luta, ao embate, ao confronto (que de algum modo é o caráter dos tempos que vivemos, tempos belicosos). “A Cor de Minas” é um disco que fala da beleza e da vida. Não esconde a solidão, a dor, o sofrimento, os desenganos, mas louva a amizade, a luta, a beleza, o amor pela vida. Acredito que seja o jeito de Taynara lutar, contrapondo a virulência absurda de tempos que nos ameaçam tempestades destruidoras. Sua proposta é a serenidade da contradança festiva. E faz isso sem comiseração, sem afetações. Com sua música, a experiência do viver é tornada um tesouro, que a gente descobre não lá longe, alhures, mas aqui, ao lado.

Ao longo do disco percebemos ecos da música de Milton nascimento e da turma do Clube da Esquina, elaborações muito próprias, evidentes no rico uso de percussões, tocadas com tanta delicadeza que faz lembrar Carlinhos Ferreira. Reminicências indígenas e negras, caboclas, se fazem presentes, criando uma atmosfera com toques aristocráticos, pois suas construções são de uma simplicidade estonteante e ao mesmo tempo ricamente elaboradas (o verdadeiro nobre não precisa se exibir, é naturalmente reconhecido). É uma musica que arrebata, porém com leveza, suavidade. Cada peça é para ser apreciada sem pressa, pois não se revela com todas as suas nuances, num primeiro momento. É como uma pedra lapidada que precisa ser vista/ouvida de vários ângulos.

A Minas Gerais que Taynara nos apresenta não é a Minas petrificada no passado  tampouco com promessas de futuro de riqueza fácil. É uma Minas que existe no coração do Brasil, convidando à boa prosa sob cheiros, sabores e cores envolventes: o disco de Taynara termina sem concluir, como se fosse o intervalo de um concerto. Aguardemos os próximos movimentos da sinfonia Marcelo Taynara.



O canto final, o sintomático “Balaindifulô”, alegre gingado, deixa-nos a impressão de que ao longo da estrada brasileira, tem muito ainda a ser conhecido. Ou que merece ser reconhecido!

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