SE pudéssemos colocar num mesmo plano, num mesmo cenário esses rabequeiros, esses artistas que se dispuseram, cada um do seu modo, a estudar e tocar esse instrumento tão característico e distinto, perceberíamos que entre Zé Gomes, Nelson da Rabeca (Nelson dos Santos), José Eduardo Gramani, Thomas Rohrer, e muitos outros, uma teia invisível os une, uns de forma direta, outros indireta. O importante a ressaltar de tudo isso é a importância e a riqueza do singelo instrumento que está presente por todo o Brasil e em cada lugar é confeccionado e executado de maneira diferente. Ao contrário de seu parente rico, o violino, não existe um padrão para a fabricação da rabeca. E a rabeca tem, no seio da arte popular, diversas utilidades: tanto pode animar festas dançantes, participar de desafios ou ser tocada em funções religiosas, como Folias de Reis.
A música que Zé Gomes e Zé Gramani produziram, embora tenha sido em cenário e situações totalmente distintos, possuem muitos elementos comuns. Antes de tudo, convém falar que a atuação de ambos foi de maneira profundamente decisiva no cenário de nossa música instrumental, desde os anos 1950 – no caso do Zé Gomes, o Gramani é um pouco mais novo e sua atuação sempre foi junto a UNICAMP.
Ambos pesquisadores, ambos apontaram rumos e felizmente geraram sementes, produziram frutos, que continuam a alimentar os admiradores da música brasileira,mesmo levando-se em conta a pouca importância que a mídia especializada lhes dedica. Gramani se foi a exatos 22 anos (1998), jovem ainda, aos 54, logo depois de ter realizado seu trabalha decisivo, o antológico disco “Mexericos da Rabeca”; Zé Gomes nos deixou em 2009, aos 74 anos, em plena atividade e repleto de projetos que deixou inacabados – um desses projetos merece vir a tona, um “Método Para Rabeca”, inédito. (Onde andará esse método? Talvez seu filho mais novo, o Daniel, tenha noticias).
O violino foi o instrumento preferido de ambos, mas foi a paixão pela Rabeca que acabou por nortear a experiência musical dos dois.
Primeiramente, algumas – poucas – palavras sobre a rabeca, instrumento tinhoso e que conduz os incautos a um sério engano, ao acreditar que venha a ser uma imitação do violino (um violino que não deu certo). Ledo engano. A Rabeca, dada a sua simplicidade e freqüente uso na música genuinamente popular/folclórica, é extremamente versátil, ideal tanto para ilustrar peças dolentes e também folguedos. Na Era de Ouro do “repente nordestino” – pelo menos desde o século XVIII até meados do século XX -, a rabeca foi uma companheira perfeita para a “viola nordestina” (uma das variantes da viola caipira), cujos impressionantes duelos poderiam durar vários dias. Podiam duelar tanto duas violas como uma viola e uma rabeca.
Dando certa razão aos que pensam ser a rabeca um violino que não deu certo, lembremo-nos da experiência envolvendo o grande mestre Nelson da Rabeca, compositor, executor e luthier cuja formação deve-se a um feliz acaso. EM visita a casa de sua filha, viu na televisão alguém tocando violino e achou aquilo muito bonito de se ouvir que se propôs a tocar. Sendo o preço de um instrumento muito acima de suas posses de aposentado, teimoso e determinado, resolveu construir ele próprio um violino, pois madeira era o que não faltava nos arredores de sua casa, na cidadezinha de Marechal Deodoro, AL. Para encurtar a história: não fez um violino, mas o timbre peculiar extraído daquele “quase violino” o tornou um dos artistas mais originais que se conhece e ganhou o país e o mundo, nos últimos anos acompanhado do fiel discípulo e parceiro, o suíço Thomas Rohrer, outro que entrou para o mundo da rabeca meio por acaso, mas deixemos sua história para outro momento.
Alguns dizem ser a rabeca uma espécie de avó ou bisavó do violino. Provavelmente seja precursor do violino europeu, mas é fato reconhecido que a rabeca tem sua própria trajetória, desde a Idade Média até os dias de hoje, pelo mundo inteiro. Sua origem mais remota leva aos árabes, de onde vem a maior parte dos instrumentos de corda, seja de arco ou dedilhadas: alaúde, saltério, vihuela, etc. Rabeca e violino tem, assim, destinos completamente distintos.
Não foi por acaso que chamou a atenção de dois dos maiores músicos/pesquisadores brasileiros, José Kruel Gomes (Zé Gomes) e José Eduardo Gramani (Zé Gramani).
Zé Gomes foi musico precoce. Nascido em 1935, aos 14 anos já tocava profissionalmente e quando se mudou para Porto Alegre com a família, aos 17 anos, ingressou no Movimento Tradicionalista, no grupo de Paixão Cortez. Na segunda metade dos anos 1950, com menos de 20 anos formou o grupo Os Gaudérios , músicos que zelavam ao mesmo tempo pela tradição e vanguarda, revolucionando a música tradicional gaúcha, conhecida pelo conservadorismo. Revolucionaram com arranjos arrojados. É deles o conhecido arranjo para “Homens de Preto”, de Paulo Ruschel, uma das mais dramáticas e bonitas cenas pampeanas já realizada, que ganhou mundo com Elis Regina e até hoje é freqüentemente regravada. Destaque também para “Passeando no Pago”, onde sons do pampa (carro de boi, mugidos de boi, latido de cachorros) são recriados nos instrumentos, uma revolução para a época (1959), antecipando em décadas o que hoje chamamos “música experimental”.
Zé Gomes teve uma vida musical muito intensa, como músico e professor, tendo promovido inúmeros cursos e seminários, formado muita gente. Em 1985 viajou com Almir Sater e Geraldo Espíndola para o Pantanal, quando entrou em contato com a viola-de-cocho e a rabeca, rústicos instrumentos que lhe chamaram atenção. E nos dez anos seguintes dedicou-se à estudar esses dois instrumentos, burilando, trabalhando-os e afinal, os inserindo num contexto urbano. Esses dez anos de pesquisa renderam um primoroso disco, 13 pérolas músicais buriladas ao extremo, um trabalho de ourives: o disco “Palavras Querem Dizer”. Devemos a ele, Zé Gomes, a inserção da viola-de-cocho, especialmente sua adaptação a outros gêneros e estilos, abrindo caminhos para muitos outros que vieram depois dele.
Depois do “Palavras Querem Dizer” lançou comercialmente mais um disco, “A Idade dos Homens”, em parceria com seu filho André. Lançou outro trabalho, com circulação reduzida entre clientes da LexMarket. Uma pena não ter alcançado o grande público. O disco “Tempos Interiores” poderia ser classificado como uma autobiografia musical, pois nele, sinteticamente, Zé Gomes nos apresenta um pouco de sua visão musical e de vida, ele que dominava perfeitamente a linguagem erudita e popular. Quem melhor o define é o então critico musical Enio Squeff, no primoroso texto de encarte:
“Zé Gomes nunca se recusou a J.S. Bach, Beethoven, Mozart, Stravinsky, ou ao nosso Villa-Lobos, de cuja obra violonística foi um interprete simplesmente soberbo. Mas, se há algo que o define, não é a musica de raízes que, afinal, tomou a maior parte de sua vida; nem a bossa nova com que todos o conhecemos interpretando e o encomiávamos, ainda na década de 60. Desse homem, literalmente dos sete instrumentos, só um conceito o define – o velho e bom artesanato, a que, justamente, se agrega a palavra ecletismo. Nenhum dispensa o que é, de longe, o que distingue Zé Gomes, que é seu imenso talento.”
Quem ouve o impecável disco, lê o magnífico encarte, não consegue compreender porque uma obra desse quilate continua no mais absoluto anonimato. “Tempos Interiores”, ainda pode ser encontrado em sebos ou no mercado livre. O mesmo, infelizmente, não se dá com o “Rabecas”, disco no qual ele botava muita fé, considerava pessoalmente um de seus trabalhos mais importantes devido as experiências realizadas com a rabeca entre ele, Thomas Rohrer e Fabio Freire na percussão. Nesse trabalho realizado no pequeno estúdio que possuía em sua casa, na Serra da Cantareira, que pouquíssimos ouviram, a experiência com a rabeca é maximizada ao limite. O disco flerta abertamente com a tradição nordestina e radicais improvisos livres entre os músicos.À muito custo consegui uma cópia do trabalho com o Thomas. Mas não tem os nomes das faixas. O Thomas informou-me que existe um texto introdutório bastante elucidativo escrito pelo próprio Zé Gomes.
Deixou vários trabalhos prontos para serem gravados, além do Rabecas: um deles é o Orquestra Rústica, onde ele usa uma série de instrumentos nada convencionais, como o chorongo (uma espécie de berrante).
José Eduardo Gramani, nascido em 1944, Itapira, São Paulo, teve sua vida devotada aos estudos eruditos e populares. Lecionou na Universidade de Campinas (UNICAMP) de 1981 até 1998, ano em que faleceu, no auge da capacidade criativa. Um ano antes (1997) havia lançado o imprescindível “Mexericos da Rabeca”, onde deu vez a um verdadeiro tratado litero-musical explorando o universo da rabeca. Ao que tudo indicava, tal pesquisa teria continuidade, não fosse sua trajetória ter sido interrompida por um traiçoeiro câncer. “Mexericos” é uma pequena amostra das capacidades do instrumento, das inúmeras maneiras que pode ser tocado em diversas partes do Brasil, nos mais variados gêneros e ritmos, desde baião, passando por serestas, canções, modinhas, etc. Ouçam a toada “Melodia” e o baião “Calanguinho”, dignas de comporem qualquer repertório erudito, “popular” ou de musica antiga de um dos grupos do catalão Jordi Savall.
Criador de vários grupos de câmara – Oficina de Cordas, Trem de Cordas, Armonico Tributo, Kamerata Philarmonica, Orquestra Villa-Lobos , Camerata Barroca de Campinas – onde atuava como violinista, além de diretor artístico e outras funções, todo esse trabalho girava em torno do pessoal da UNICAMP, onde era professor. Acredito, no entanto, que foi como rabequista que tenha realizado um trabalho realmente revolucionário, através do Grupo Ânima e do Trio Bem Temperado, que rendeu o disco antológico “Mexericos da Rabeca”. “Mexericos” culmina uma trajetória, que sempre mesclou de maneira extraordinariamente respeitosa o encontro entre o popular e o erudito; em muitas peças ocorre mesmo a fusão entre gêneros.
Um bom resumo de tudo o que Gramani realizou pode ser encontrado no CD “Trilhas”, 20 faixas bem divididas entre violino e rabeca: 10 faixas com os grupos Oficina de Cordas e Trem de Corda, onde executa o violino;
10 faixas com o Trio Bem Temperado e Ânima, como rabequista.
Outra faceta importante de Gramanni, a de professor, é desenvolvida nos livros “Ritmica” e “Ritmica Viva”, material obrigatório para músicos e para quem pretende extrair da música algo mais que o “ruído” e o silêncio que o segue . Na feliz expressão da Revista Eletrônica ANPPOM (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música), seus estudos de “rítmica” fogem completamente aos cânones, constituindo assim, num “anti-metodo”, uma “proposta para o equilíbrio entre o sensorial e o racional.”
ZÉ GRAMANI & ZÉ GOMES
Zé Gramani e Zé Gomes, embora contemporâneos, nunca se encontraram, nunca se reuniram. Provavelmente nem se conheciam. Embora fossem ambos violinistas e estudiosos da rabeca e tenham exercido durante toda a vida um intenso trabalho de estudos e ensinamentos, freqüentavam ambientes diferentes (embora não excludentes): Gramani focado no ambiente universitário; Zé Gomes atuando como músico e pesquisador.
Embora qualquer tentativa de definição possa soar inapropriada, acredito que Gramani talvez viesse a ser um “estilista” – estilista, não num sentido puro, mas sim no aprofundar-se nas origens ignotas e suas relações com as respectivas sociedades -, voltado à descoberta das potencialidades musicais ocultas atrás das harmonias e melodias. Zé Gomes, por sua vez compreendia a música através de um amplo arco que poderia abranger o passado remoto com o futuro porvir; para ele a única coisa “ultrapassada” em termos de música era a acomodação nas facilidades, entre elas a do “sucesso fácil”, o que o levou,por exemplo, num determinado momento a se afastar do grupo de Almir Sater depois de 20 anos. Por isso navegava com desembaraço entre antiguidades e vanguardas, fossem européias, africanas, orientais e da MPB, fã confesso de Bossa Nova que era. Nesse aspecto, encontrou em Thomas Rohrer - a quem apresentou a rabeca - um parceiro ideal, por igualmente ser um inconformado, que deixou de lado um futuro relativamente seguro na música clássica para se aventurar nas experiências radicais da música dos trópicos, que podemos chamar primitiva.
Tais aspectos mencionados são facilmente perceptíveis numa analise, mesmo sucinta, da discografia dos dois, aliás, pouco extensa, porém trabalhada com extremo cuidado, burilando até que a peça se revelasse na íntegra, sem qualquer excesso: décadas de aprendizado e estudo que resultaram em ricas e raras peças de ourivesaria. Porém, não resta dúvida de que o mundo do disco poderia ter aproveitado melhor tanto talento, que poderia e deveria ter sido melhor explorado. O Zé Gomes, a quem eu conheci, tinha um grande desejo de tornar sua música conhecida.
São três ou quatro discos para cada um: Gramani ,que eu saiba, apenas as gravações de concertos de Bach para violino (Camerata Barroca, de Campinas), o CD “Trilhas”, participações no Ânima e o “Mexericos da Rabeca.”(relembrando que “Mexericos” é um verdadeiro tratado, uma aula, na qual ele experimenta diversos tipos de rabecas, de Sul a Norte do país.
Zé Gomes gravou poucos discos solos, porém, uma vasta participação em discos de outros artistas, com destaque para as parcerias com Dércio Marques, especialmente “Terra Vento Caminho”, um dos melhores discos já produzidos no Brasil, onde o mínimo que se pode dizer é Formidável. Ao todo, foram mais de 200 participações.
Seu primeiro disco, resultado de seus estudos com rabecas e viola-de-cocho, foi feito quando já passava dos 60 anos.
AFINIDADE ELETIVA?
Seria possível recorrer a esse termo bastante conhecido e citado, mas pouco estudado, que vai das origens da química à sociologia? Arrisco-me a dizer que sim, dada a constatação que ambos tinham formas coincidentes, embora muito particulares e distintas de encarar a música, que ia muito além da técnica e do conhecimento puramente musical para adentrar -se em configurações muito específicas dos meios sociais, culturais ou mesmo espirituais. O conceito de afinidade eletiva trata de possíveis relações fenomenológicas que aborda certos movimentos de convergência e atração recíproca sem que exista uma decidida intenção para que tal aconteça. Quem melhor tratou do assunto foi Goethe, que escreveu um romance a respeito. O romance, por sua vez, foi inspirado no mundo dos elementos químicos, onde, sob determinadas circunstancias se atraem ou retraem. Goethe transportou tal conceito para o mundo das relações amorosas. O tema rendeu um interessante filme, dos irmãos Taviani, que fez muito sucesso entre os freqüentadores de cine-clube nos anos 1980. Poderíamos também recorrer, com certa razão, à “sincronicidade”, que trata de eventos simultâneos e afins, sem que haja comunicação direta entre os mesmos. O fato inegável é que tanto Zé Gomes como Zé Gramani, dois músicos advindos da chamada “musica erudita” que aportaram na musica popular e dedicaram-se com paixão ao estudo de um mesmo instrumento: a rabeca. Existia, em cada um deles, uma evidente afinidade, que era mais que uma atração curiosa: ambos procuravam, cada um do seu jeito, desvendar o mundo no qual a rabeca era praticada desde a antiguidade (embora o violino possa ser chamado um sucessor, a verdade é que o destino de ambos foi completamente diferente, permanecendo a rabeca animando os folguedos populares e o violino freqüentando os grandes salões).
Num ponto, pelo menos, se aproximam: a pouca importância concedida ao “virtuosismo”. Tanto para um como para o outro, o virtuosismo, de certa forma, é até mesmo um empobrecimento com relação ao verdadeiro sentido da música – afinal, o que é mais importante, a música e tudo o que ela significa, ou o musico que a executa? O violeiro Gedeão da Viola dizia que o violeiro é um simples servo da viola (e da música). O virtuosismo, em si mesmo, pode ser apenas um gesto de arrogância do executante, até mesmo um “encobrimento” do significado real e verdadeiro da composição e sua relação com o mundo ao redor, seu compromisso com a sua história e seu tempo.
TRADIÇÃO
A musica dos dois podem ser maneiras específicas do trato com a tradição. Eram fiéis as tradições e ao mesmo tempo eram rebeldes, ousados, nunca se acomodando. Tradição para eles era uma fonte de saber, tinham profundo respeito pelo conhecimento ancestral . Mas também era uma coisa viva e não somente um amontoado de colagens de coisas antigas. A tradição possui os “instrumentos” que permitem compreender a vida ao redor, ao longo das eras. Ambos artistas tinham especial apreço pela interação música/povo, inevitável quando se trata de música genuinamente popular. Os elementos da tradição são igualmente janelas que se abrem. Através da tradição, futuro, presente e passado dialogam, se equilibram.
Uma boa dica para se compreender Gramani é o encontro do Cravo e a Rabeca, instrumentos predominantes no “Mexericos”, distantes no espaço, no tempo e na história. Atravessaram mares e compuseram uma dupla, a principio bastante improvável: quem diria que a rabeca, que deve ter surgido nas caravanas que atravessavam o Médio Oriente, fosse um dia se encontrar com o aristocrático cravo europeu? Quem tiver dúvida, ouça o disco.
E uma boa amostra da pertinácia e seriedade com que Zé Gomesencarava seu trabalho é encontrada na execução da musica “Véia Messina”, inspirada num “causo” que Saulo Laranjeira costumava declamar. “Véia Messina” é um personagem dos interiores profundos do Brasil que está desaparecendo. Na minha infância, era muito comum qualquer comunidade ter a sua “velha louca”. Esse personagem tem origens remotas. Em alguns casos, pode ser também o “velho louco” ou o Homem do Saco, que assombrava as crianças (o violeiro e escritor Paulo Freire sempre conta uma história do “homem do saco” em suas apresentações). A “velha doida” geralmente é uma personagem inofensiva e tolerada, cuidada e alimentada por todos na comunidade. Outra versão conhecida da é a musica “Chaleira do Alto da Poeira”, de Tavinho Moura e Fernando Brandt, gravada por Pena Branca e Xavantinho.
Pois bem: Zé Gomes gravou sua particular versão de “Véia Messina” , instrumental, no disco “Tempos Interiores” – aquele que não foi lançado comercialmente. Segundo o próprio me relatou, ele experimentou vários instrumentos, desde violinos a diversos tipos de rabecas. Nenhum instrumento o satisfazia, até que um dia andando numa cidade qualquer do interior se deparou com alguém – creio que uma criança – arranhando uma rabequinha, dessas sem nome, provavelmente de brinquedo. Seus ouvidos atentos detectaram o som que ele buscava. Adquiriu a mesma, fez uns ajustes e foi com ela que gravou “Véia Messina”, a velha de um povoado qualquer, em qualquer lugar do mundo. Em qualquer tempo sempre haverá uma “velha doida” convivendo harmonicamente com os seus próximos. Exceto em certo lugares das grande metrópoles onde as “velhas loucas” podem ser uma ameaça letal e correm sério risco de ser encarceradas em manicômios, escondidos sob o eufemismo de “clínicas”.
Em tempos de som bate-estaca, onde aplica-se altos volumes de decibéis para que os defeitos dos músicos não fiquem tão evidentes, a simplicidade de “Véia Messina” fica ainda mais realçada com o acompanhamento da singela viola-de-cocho, de recursos limitadíssimos sonoros. O resultado é um supra-sumo: música em estado puro!
Quando, nos dias de hoje, vemos Thomas Rohrer dividindo o palco com “seu” Nelson da rabeca, se repararmos bem, lá no fundo, junto às cortinas, haveremos de ver as discretas sombras de dois cavaleiros. Cavaleiros que amavam a rabeca. Onde quer que um genuíno toque se mostre, lá estarão eles.