"Mas aquele que tocou o fruto
provou a inicial doçura do tempo."
(Mia Couto)
Tivemos a oportunidade, poucos dias atrás, de escrever
nesse mesmo espaço do blog ser-tão paulistano sobre o trabalho da dupla Consuelo
de Paula e João Arruda, ainda sendo finalizado. Feliz oportunidade de
divulgar o trabalho ainda em sua de conclusão, através de lives reveladoras do processo de criação. Um tesouro para quem tem
interesse em conhecer os pormenores do processo artístico (ser-tão paulistano, Beira de Folha, o Disco de Consuelo de Paula
e João Arruda).
Consuelo e João Arruda, que dizer deles? Sempre tem
algo novo e revelador sobre ambos: são artistas – músicos, compositores,
arranjadores, instrumentistas de excepcional qualidade – mas transcendem a isso. Tem compromissos maiores com seu público, seu povo; são vinculados aos problemas, aos dramas, às alegrias de seu
tempo. Embora suas obras não sejam datadas, nos tempos futuros, se alguém se
debruçar a analisar seus trabalhos, haverá de descobrir relações intrínsecas
com o mundo que os rodeou, em seu tempo – o trabalho é um retrato revelador, seja de ordem técnica, artística,
social.
O historiador do futuro descobrirá que a obra de
ambos exala verdade. Suas motivações e inspirações nascem do coração;, o conhecimento,
o talento e o apuro técnico que ambos esbanjam são inteiramente subordinados a
essa verdade maior que buscam com rigor,
encontram e revelam, repartem conosco. Artistas profundamente orgânicos,
que entregam tudo de si, sem
concessões: em cada acorde, em cada fraseado, em cada canção ressoa a vibração de cada célula, que por sua
vez transfere-se a um público extasiado
que acolhe, canta junto, sente junto, vibra junto.
Como se viu nas lives
e como se ouviu no CD já disponível nas plataformas digitais, cada poema,
cada arranjo são todos inspirados em imagens e sons da natureza. Todo esse material é retrabalhado,
reinventado, recriado, sendo cada peça quase como uma obra aberta, pois é um convite a seguir viagem.
“Beira de Folha” não termina na última faixa, não se esgota quando todos nós retomamos a vida de sempre. “Beira de Folha” foi feito de tal forma intensa que seu
destino é mudar paradigmas, quem o ouve sente-se participante do processo, se reconhece, não fica indiferente! E nos breves interstícios, sobrepõe-se a reflexão que nos
induz a nos tornar militantes da causa
maior que nos motiva: a vida!
O poema, a imagem, o acorde, tudo ressoa mágicamente - vozes, violas, batuques, em sincronia e esses momentos de indescritível
beleza não são apenas pausas na labuta para nos entreter. Em meio a tanta
beleza, tanta sutileza, quase etéreas, como um coral de elfos, duendes, silfos, ondinas, salamandras, ouvimos também contundentes manifestos nos desafiando a
desafiar: “...antes que a floresta termine”, (...), “...antes que a vida
desapareça” (...). A última faixa, “Poema de Arvore II”, não foi feita para
terminar e fechar o disco, mas sim lembrar que a viagem está apenas começando...
Sim, uma viagem que apenas começa, pois são tempos em que a natureza é severamente ameaçada. “Beira de Folha” é para ser ouvido, visto, tocado pelo tato, vivenciado, enfim, como uma inigualável Ode à Natureza, mas também para ser refletido pois tudo ali é matéria viva, é barro ainda úmido nas mãos dos escultores musicais.
Poderiam se
aproveitar do mote “natureza” para chamar
a atenção para essa questão tão crucial dos nossos tempos, a defesa da
natureza, mas eles não o fazem porque se torna desnecessário para quem os
conhece. A preservação do meio ambiente, é preciso lembrar sempre, não é um
exotismo, é defesa de um patrimônio, que por obra dos deuses coube a nós o
privilégio de cuidar; lembrar que a floresta vale mais em pé do que derrubada; lembrar que os rios valem mais limpos e habitados
por peixes do que poluídos por mercúrio e cheios de dejetos. São coisas óbvias,
saberes que os índios conhecem a milênios, mas os novos bárbaros, recém
chegados ao Paraíso, desconhecem! (Faço minhas as palavras do Cacique Xavante Apoena que, na década de 1940, ao convencer
seu povo de que o contato com o branco era inevitável e a única forma de evitar
um banho de sangue era estabelecer contato, afirmou: “O branco (chamado
em xavante warazu) precisa ser amansado.”
Era um discurso para seu público interno, os então orgulhosos e considerados
indomáveis xavantes. Mas o sábio Apoena sabia do falava. Não é por acaso que
seu nome em xavante – Ahöpowê – significa “o que vê longe...”
Consideremos, assim, “Beira de Folha” como um barco que nos
faz revisitar nossas memórias. A pureza dos instrumentos e vozes fazem evocar
em nós memórias recentes e também antiguíssimas, ancestrais memórias, às quais devemos nossas
referências e a construção de nossas identidades, como nos lembra Ailton Krenak
em “Idéias Para Adiar o Fim do Mundo”. Ainda de acordo com o arguto pensamento
do filósofo Krenak, devemos tomar cuidado com as armadilhas que nos montam ao
longo dos nossos percursos. Um deles o termo “sustentabilidade”, expressão pode estar apenas escondendo um
rótulo. Ou uma maneira que a industria descobriu para continuar vendendo seus
produtos para um público que chamam qualificado. “Sustentabilidade” é, sim,
necessária, mas não é grife. Junto com essa prática, absolutamente necessária
para nossa sobrevivência enquanto espécie, deve ser desenvolvida
simultaneamente uma reflexão que nos sirva de alerta outras necessidades além
do consumo. Ou simplesmente estaremos dando prosseguimento à velha e nefasta idéia
de domínio sobre a natureza. Aqui, lembrando outro pensador, o francês Edgar
Morin, “precisamos urgentemente repensar
nossas ‘necessidades’ de consumo”.
A Vida, ou melhor, a Natureza sempre encontra caminhos
alternativos. Contudo, estamos perto do limite. E da catástrofe: ou mudamos
nossa fúria consumista, como se a céu fosse o limite ou a “sustentabilidade” será apenas um rótulo de produto, uma carinha
simpática com a mesma profundidade de um emoji,
a novilíngua dos tempos atuais.
Enfim, é preciso mais! É preciso construir uma nova
educação. Uma educação que oriente as atuais e as próximas gerações. Essa compreensão é condição sine qua non da harmonia que deve haver
entre todos habitantes do planeta; que ninguém nem nada deve estar submetido ao
bel prazer de outrem; que todos os seres da natureza tem seu papel e lugar; que
nossa tão cultuada razão, dom divino, seja uma benção e não uma arma! Razão e
arma são elementos que não se misturam!
Peço perdão por ter me desviado do assunto principal – o belíssimo CD de Consuelo de Paula e João Arruda (a dupla poderia adotar o nome João e Maria, pois esse último é o primeiro nome da mineira de Pratápolis) – mas a minha intenção foi ressaltar que a Arte verdadeira nunca está separada da Vida. Os artistas não criaram a partir do nada: a Arte antecipa, a Arte é profética e por isso há de salvar esse mundo quando a esperança fenecer.
“Beira
de Folha”, embora não cite nomeadamente ninguém (com exceção do velho xamã João Bá)
nos lembra o despertar de nossa consciência ecológica pavimentada por artistas
como Dércio Marques, Cátia de França, Augusto Jatobá, Antonio Pereira de Manaus,
até mesmo o velho Noel Guarany, que na contracapa de seu LP “Para El Que Mira
Sin Ver” dedica a obra aos pajadores da
América que “...com seu humilde
instrumento musical andam a clamar amor pela terra, para que bem a tratem.” Vital Farias, Xangai, Socorro Lira, Sol Bueno,
Victor Batista... O próprio Villa-Lobos dedicou obras consideráveis à Amazônia, Egberto Gismonti, Paulo Cesar Pinheiro, Naná Vasconcelos... A lista
de artistas comprometidos com a defesa da natureza, da Vida, é longa, o espaço
aqui seria insuficiente...
Em “Beira de Folha”, João Bá e Dércio Marques estão
diretamente envolvidos na história. Como diria Kátya Teixeira, são “parceiros
etéreos". João e Maria se o quisessem,
fariam da defesa da natureza marketing pessoal,
mas não o fazem porque eles são a própria natureza! Assim como João Bá e Dércio eram,
eles próprios, o rio, o aguapé, a árvore, o coati, o peixe, a jaguatirica, o
pescador, o ribeirinho, o anún, a arara, a paineira, o tamanduá, a jaguatirica,
o índio, o seringueiro, o jaó e os inúmeros seres animados e inanimados que
habitam as florestas, os campos, os brejos, o pé de serra, o chapadão, também as
ruas, trilhas, estradas, caminhos de ferro, todos convivendo de maneira
equilibrada. Na natureza, tudo se equilibra, os anos, os milênios, tudo
transcorre a seu tempo: o rio, lembra Ailton Krenak, não é apenas um rio que
fornece água e peixe, “o rio é também o nosso avô!” (No entanto, é bom lembrar
que o rio agonizante não tem pressa. Pode demorar 10, 100 ou 1000 anos, ele se recupera.
No fundo, quem precisa ser salvo é a humanidade insensata, cuja estupidez agride, como nos tristes eventos de Brumadinho e Mariana).
O DISCO
“Beira de Folha”, é para João Arruda, um passo adiante de seu último trabalho solo, o “Venta Moinho”; para Consuelo de Paula, um desdobramento do ensimesmamento que resultou “Maryákoré”, seu disco rústico.
João e
Maria dão-se as mãos, revisitam a natureza que sempre habitou dentro de ambos –
e, porque não?, de todos nós – e nos mostram as belezas e a importância da
natureza – algo mais que “produto”, tal como fomos adestrados como
“consumidores”: são doze faixas – melhor
dizendo, 12 trilhas, 12 caminhos, que se interligam. Os temas saltam de um para
outro, retrocedem, avançam. Nalguns momentos são como delicadas elipses, doce
rumorejar acompanhando a perenidade do rio da vida. Mas, quando necessário, podemos ouvir a
contundência do Trovão, os solavancos das rápidas corredeiras.
“Beira de Folha”
é um barco, singrando um rio chamado Brasil, ao sabor de suas correntes,
em viagem. Leva e colhe noticias de um Brasil, ainda oculto nas dobras sombrias
de nossas consciências entorpecidas. Uma fã da dupla escreveu numa rede social
uma singela verdade, ao comentar, emocionada, o disco:
“.”Vocês são absolutamente necessários!” (Lena
Mouzinho)
O disco termina nos convidando a retomar a estrada,
pois o tempo é o mesmo tempo das
primeiras árvores! O tempo é viajeiro, mas é o mesmo tempo que
presenciou as primeiras paisagens, salta cercas e telhados, salta eras e sempre
recomeça. O tempo nunca se perde, nós é que eventualmente nos perdemos! Somos
nós que devemos retomar a consciência, religar nossa natureza primordial –
antes que a floresta termine.
“Beira de Folha”
é desses trabalhos inesquecíveis, que haverá de marcar época, porque atinge o
ouvinte diretamente na alma, no coração. Alma ancestral, coração de agora. E
sempre.