ESTRADAR: A MÚSICA DE ELOMAR COM PIANO E VOZ

 

O mundo elomariano é mundo a parte. Somente através de frestas conseguimos vislumbrar parte de seus mistérios que, embora seja escancarado  à vista de todos, tem mistérios  insondáveis a olhos e ouvidos incautos:

Embora tenha sido produzido em 2019, o disco Estradar (selo SESC), na voz da cearense de Juazeiro do Norte Verlúcia Nogueira , e do pianista paulista de Leme, Tiago Fusco, é uma lufada de ar fresco  que  nos acaricia a alma nesses  últimos tempos da vida brasileira. 



 


 

Chama a atenção um álbum completo com canções do universo elomariano interpretado por uma voz feminina acompanhada “apenas”, por um piano solo, recursos até então nunca utilizado na obra de Elomar, que se serve de um grande rol de instrumentos orquestrais, mas nunca o piano e, quase sempre, o violão  como instrumento central, companheiro  inseparável na obra do compositor, que também é um trovador, ao estilo medievo, o ambiente preferido para situar sua obra. Vem a calhar, pois o Sertão, cenário de suas óperas, antífonas, canções ligeiras e árias avulsas, é um mundo que permaneceu relativamente isolado do litoral histórico. O sertanejo (que ele prefere chamar sertanez, provavelmente com receio de ser confundido com o outro gênero muito em voga no país) e seu mundo, o sertão geográfico é personagem que ainda nos dias de hoje circula relativamente sem  sofrer drasticamente influências externas; isso devido ao isolamento a que foi submetido ao longo dos séculos. Ainda em dias atuais seus valores morais lembram muito do período medieval. O Sertão  de Elomar, é um mundo apartado do tempo e espaço  com costumes, regras e maneiras de pensar muito próprias. Sertãomundo, podemos chamar o sertão  de Guimaraes Rosa,  Ariano Suassuna e Euclides da Cunha. Formas distintas de ver, sentir e ouvir um mesmo universo e seus aspectos geográficos, culturais, existencialistas.  Elomar, com mais de 80 anos de idade, continua compondo, ou melhor, colocando na pauta a imensidão musical guardada em sua cabeça, grande parte para ser partiturizada e outro tanto para ser gravada. Por essas e outras, desejamos vida longa ao bardo de Vitória da Conquista para que ele nos revele esses mundos esquecidos, fazendo jus ao que diz o vaqueiro Quilimero, de sua terra: “...o dotô canta as coisas véa isquicida.”

A inusual dupla, voz feminina e piano, abrangem uma significativa  amostra,  onde se destacam algumas árias da principal obra/ópera  do compositor, o Auto da Catingueira (Bespa, O Pidido e Clariô), além d’A Pergunta, gravada no álbum duplo A Quadrada das Águas Perdidas, mas faz parte da ópera inédita em disco, “O Tropeiro Gonzalin”. As trilhas  são: canções ligeiras (Função), canções de evocação ao próprio passado e de sua região (Cavaleiro do São Joaquim), canções líricas ou de amor como (Incelença Pro Amor Retirante, Cantada, Campo Branco, uma das mais conhecidas do cancioneiro elomariano, presença quase obrigatória em todas as suas apresentações); canções trágicas sobre a vida dura e áspera do Sertão, (Ritirada, que retrata uma saga retirante; a pungente Curvas do Rio, peça que retrata a exploração desumana do trabalhador da terra; Histórias de Vaqueiros, esses homens destemidos capazes de “pegar boi a unha!, conforme os ditos locais). O disco termina de forma magistral, graças ao arranjo surpreendente, onde o piano  faz vezes de percussão, violão e viola na esfuziante Na Quadrada das Águas Perdidas, do álbum de mesmo nome, o segundo disco de Elomar, de 1978. “Na Quadrada”  é uma convidativa porta aberta ao improviso, faz vezes de jam-sessions.

Ao longo do disco, o piano de Tiago Fusco faz suas próprias incursões dentro das composições, criando novos caminhos sobre os arranjos originais das composições. E isto nada tem de aleatório, pois o disco foi produzido pelo filho do compositor, João Omar, que além de talentoso tem luz própria e provavelmente seja quem melhor conheça ,e compreenda, a obra do pai.

A presença de mulheres cantando Elomar  não é incomum, embora a temática prevalecente no universo elomariano seja um mundo de homens:  guerreiros  e labutadores sobreviventes do áspero sertão, . Contudo, a mulher está presente, estas sim, mulheres incomuns como a personagem Joana do Tarugo, que teria sido a nonavó de Elomar, que ele descobriu pesquisando nos arquivos de Vitória da Conquista. Na ópera Auto da Catingueira destaca com fortes cores a presença de Dassanta, a espevitada cabocla  por causa de quem dois cavaleiros, um pacato vaqueiro, outro  atrevido cantador, onde, ao fim de um impressionante duelo  onde  utilizam uma enorme gama de  gêneros de desafios,  esgotadas as possibilidades de vencer o adversário na viola e no verso, deixam de lado os instrumentos e se engalfinham num mortal duelo de facas, onde a própria Dassanta é vitimada, fazendo jus à fama que dela corria,

Dassanta era bunita que inté fazia horrô/No sertão pur via dela/ Muito sangue derramô

Na obra (1983), seguramente o cume de sua trajetória, moço ainda,  Andréa Dalto dá voz a Dassanta, voz contundente e doce, de sertaneza. Os vaqueiros que a disputam no duelo mortal são Dércio Marques e Xangai.

CANTORAS ELOMARIANAS

Diana Pequeno gravou “Campo Branco” no seu  clássico “Eterno Como Areia”, o segundo de sua carreira, em 1979; a paulista Ana Salvagni registrou “Incelença Pro Amor Retirante” no CD “Avarandado” e “Cantiga de Amigo”  no  “Canção do Amor Distante”. A baiana Roze,  registrou  no disco homónimo (1982)“Incelença Pra Terra Que o Sol Matou (extraída da ópera “Fantasia Leiga Para Um Rio Seco”) e “O Pidido (Do Auto da Catingueira). A portuguesa Susana Travassos registrou no belíssimo Tejo-Tietê, com o violonista Chico Saraiva, "Cavaleiro do São Joaquim. A mineira Doroty Marques gravou “Parcelada” (Auto da Catingueira) no disco “Erva Cidreira”.

 Roze e Doroty contaram com a participação nos respectivos discos do próprio Elomar.

Ana Salvagni e Eduardo Lobo
 
Titane e Elomar
 


 

(Provavelmente existam mais cantoras que gravaram Elomar, porém, não tenho conhecimento. A quantidade aqui relatada, mesmo pequena em números, é significativa.)

A primeira mulher a gravar um disco completo com musicas de Elomar foi a mineira Titane, no álbum “Titane Canta Elomar – Na Estrada das Areias de Ouro”. Na voz de Titane, a música de Elomar soa como uma extensão do sertão baiano cerrado adentro, acentuando e amplificando poeticamente, acrescentando doçura à  áspera caatinga.  Verlúcia Nogueira, voz cabocla, faz uma espécie de contraponto à lirica suavidade de Titane. Há um equilíbrio perene, latente nas duas abordagens, onde o erudito e a voz do povo se encontram, se completam É salutar ouvirmos Elomar sob timbres diferentes, sem a influência direta do mesmo. Embora fiéis ao original, são concepções que revelam outros sentimentos outras visões. A musica rompe a espinhosa caatinga e se lança ao sublimes das alturas, tornando-se pura e atemporal Arte..

Duas mulheres interpretando Elomar, praticamente ao mesmo tempo, parecer tecer involuntariamente uma rede de afinidades eletivas. Abordar Elomar não é tarefa simples. Sua obra é um monumento, a  se comparar a uma Odisséia à moda de Ulisses. Melhor dizendo, Elomar é um longa metragem, uma epopeia incrivelmente  toda interligada.

Poucos foram os que  captaram tão bem as grandezas pátrias. Junta-se à Villa-Lobos e em menor grau (de grandeza) a Luiz Gonzaga, João Pernambuco, Cartola, Sérgio Buarque, Chiquinha Gonzaga, Jorge Amado. Incursões como as de Titane e Verlúcia Nogueira /Tiago Fusco nos dão esperança de alguma popularização da obra de Elomar, pois até aqui, é coisa para certos iniciados...

 


 Vai um registro do próprio Elomar interpretando Curvas do Rio:



 

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