Uma curiosa sensação invadiu-me quando ouvi pela primeira vez o CD, Anambé (2018), da cantora, compositora e poeta, Grazzi Nervegna: sua música é como sonhar acordado!, pensei na ocasião. Era mais que sonhar; a navegação através de sua arte mostrou-nos experimentos oscilantes entre o onírico e o real de cada dia, de cada momento.
Em 2021, segundo ano da pandemia global que marcou nosso mundo, entre tantas machucaduras, algumas flores que brotaram, dentre tantas que foram pisadas e outras que sequer tiveram oportunidade de brotar, chegou-nos, intacta, a poesia de Grazzi Nervegna. É sua reafirmação como artista do nosso tempo e seu livro A Tal Rosa.
Grazzi é daquelas artistas que pertencem à linhagem do/as que pretendem ir além da estética, e para isso se valem do seguinte tripé: 1) tradição, 2) transmitir claramente uma mensagem e, 3) renovar a linguagem através da qual a mensagem é transmitida. Ela é aquela que está “...onde o fogo acende e o sol acorda” (fragmento do poema Sopro) e ela faz isso respeitando a tradição poética e ao mesmo tempo renovando a linguagem com um sopro jorrante de cores. A vivacidade de suas imagens e sons é o que nos mantém alertas; do contrário se seria repetição de fórmulas fáceis e se assim o fosse, não haveria criação.
Grazzi Nervegna, a poeta e discreta militante, cumpre esses requisitos básicos e os amplia. Fala/escreve uma linguagem que as mulheres, suas ancestrais compreenderiam, que suas contemporâneas entendem perfeitamente e ao mesmo lança mensagens ao futuro, às sociedades porvir; um livro que dá voz as mulheres que não puderam falar, mas não há qualquer rancor à quem as impediu de falar e ser ouvidas. Diz ela: “Esse livro é sobre o ser mulher. É sobre quebrar-se e reconstruir-se... rebelar-se, aceitar-se e revelar-se. Eu me rebelo ao abrir a rosa. A rosa me revela.” Mas a rebeldia de Grazzi é feita com ternura, não abre uma frente sangrenta na velha e amortecida guerra. Ela não “agora é a vez do matriarcado!” como fez a personagem Nairóbi, interpretada pela espanhola Alba Flores; Grazzi estende a mão, que muitos certamente relutarão em tocar, pois é uma proposta de igualdade, tudo o que os opressores temem!
Estrofe inicial do poema SEM MEMÓRIA:
De fato / Tudo já foi dito / E as palavras que escrevo agora / Palavra por palavra / Se repetem / e se encontram / Inevitavelmente escritas / Nas paredes de outros poemas
A Tal Rosa, a principio, soa desprentenciosa. Parece querer dizer, “ah, é a tal rosa, aquela rosinha lá, mixuruquinha...” e nisso tem algo do Rosa, do Guimarães Rosa e uma das possíveis versões para o título escolhido para seu livro Tutaméia... Tutaméia seria “umas coisinhas sem valor, tutameiazinhas...” A exemplo do Guimarães, não nos deixemos enganar. Ela transmite sua mensagem com delicadeza, porém, com contundência. Ainda na primeira parte do livro, dois versinhos do poema Verena não podem passar despercebidos:
A dor não é de dar / É de Ser e não poder mostrar
E mais adiante, no mesmo poema:
...me alimento da fruta / A que foi proibida / Da primeira árvore...
E assim prossegue, ora visceral, ora reflexiva, A Tal Rosa que não teme ser exposta às intempéries. Na última estrofe do poema Ser, poderia muito bem servir de epígrafe para uma tese sobre a construção do processo de individuação, de Jung (pois não é qualquer um/a que pode afirmar com segurança, EU SOU):
Descobri que não tenho rédeas / Por aqui, eu que faço as regras / Eu Sou / O que eu mesma quis ser / Tarde demais para ver / Cedo demais para tentar esquecer / Tarde / Antes tarde / Do que nunca ser
A Tal Rosa: sonho, devaneio e, desafio: desafia a injustiça dos que clamam liberdade. Que a canção seja uma arma, aqui nos fazendo lembrar Manuel Alegre, poeta e militante português, autor de “O canto e as Armas”, com participação ativa na Revolução do Cravos e cujos ecos prosseguem mundo afora. Pois a luta contra as muitas opressões prossegue seu longo caminho. Grazzi Nervegna, em verso e música, combate o bom combate. Sem temor e com altivez!