O SER (TÃO) INFINITO DE WILSON DIAS

...como se fosse um tributo à esperança em tempos que a esperança fenece, eis que nos chega às mãos e ouvidos um disco de Wilson Dias. E chega como um estandarte luzindo através das trilhas dos sertões. Pois a música de Wilson Dias  é musica forte e singela, tal qual umbuzeiro – embora essa árvore lendária seja mais identificada com o sertão catingueiro. O Umbuzeiro é uma espécie de Rei das Árvores, símbolo de resistência às intempéries, assim como nossos artistas verdadeiramente populares resistem e florescem quando tudo em volta é puro deserto.

O sertão para Wilson é como o sertão de Rosa: um sertão infinito, maior até que o mundo, pois alcança horizontes e profundidades. Seu sertão é muitos: de memórias, topográficos, metafóricos, imaginários. 


 

O cantador e violeiro  sempre foi, desde os primórdios, um cronista de sua terra. Não apenas narrador, mas um fiel depositário dos sentimentos, alegrias e angustias de sua gente, material inesgotável, pois a cada disco uma parte desse rico universo é revelado, sempre de um ponto de vista surpreendente. Ele é um cronista diferente, pois, como lembra Ivan Vilela no imperdível texto de encarte, são registros “...de um tempo anterior à escrita.” Escreve ainda Vilela que, “...não fossem eles (os guardiães), cairiam no esquecimento.”  


 

Ivan Vilela vai mais além, é incisivo: Reconhece em Wilson Dias um descendente direto de uma rara estirpe dos preservadores das memórias dos povos, que cada época e lugar recebem denominações diferentes, mas com função igual. Escreve ele: “Assim foram os veládicas na Índia, os aedos e rapsodos gregos, os metris e os moganis árabes, os bardos celtas, os glee-men anglo-saxões, os griots em locais da África subsaariana, como nos ensina Câmara Cascudo.” Por toda América Latina e muitos lugares da América do Norte, unidos por curiosas afinidades eletivas, o canto dos terreiros de terra batida, das plantações, dos aboios, dos grupos de lavadeiras e muitos outros, continuam a ser cantados. “E assim é o Cantador, que faz viva e dá sentido à memória e a vida de seu povo.” 


 

O “cronista” Wilson Dias é dotado do talento dado por Deus, mas também é aquele que consegue captar algo que não vem das palavras, mas de algo insondável, que as comunidades trazem consigo, guardadas em seus bornais (ou, fazendo jus ao nome de sua produtora, no seu picual!).

“Ser(tão) Infinito” traz 13 faixas, sendo seis autorais (caminho, alma e chão, ser(tão) infinito, hei mundo, espírito vento, promessa de vida) e uma de domínio público adaptada por ele (sodade maria); três com João Evangelista Rodrigues, constante parceiro (cantiga de tecer a vida, berimbau saudade e chuva forte);; uma com Bilora (história de menino); uma com Rodrigo Delage (canoa velha). O disco fecha com a parceria com Dea Trancoso (olho d’água). Destaque para a participação de seus filhos, sinal que a tradição musical familiar parece bem encaminhada...

O disco todo parece soar como uma ode ao canto e a palavra, com arranjos elaborados, contudo discretos. Nenhuma performance “rouba a cena”, como se o autor desse ênfase a um recado de esperança a quem o escutar:

“cantar é preciso, até sem motivo, até sem razão”

.Sua poesia/fala é destinada aos seus contemporâneos, seguindo a máxima daqueles que, não obstante ser fiel a tradição, tem algo a dizer: recursos como live e tela na mão, referência às novas tecnologias que os últimos tempos entraram em evidencia facilitando a comunicação a distância, quando a pandemia mundial impediu contato direto das pessoas. O próprio titulo “ser(tão) Infinito” é uma ambivalência criativa que tanto pode referir-se ao mundo topográfico do sertão como ao ser e o infinito que ele pode conter em si mesmo. Enfim, é um trabalho para ser ouvido, mas também lido. A ressaltar-se, no caso, que ele não apenas realiza a importante função de resgate: também fala diretamente para as pessoas do seu tempo.

“...quero ler o ser(tão) sagrada folia / quero ler o ser(tão) Zé Coco Tião / rabeca e viola ser tambor de guia (...) quero ler o ser(tão) sem medo de ser feliz / mesmo que o meu ser(tão) / possa estar por um triz...”   - trechos da faixa ser(tão) infinito. 


 

Minas Gerais já foi chamado de Planeta Minas, no livro de Fernando Gabeira “Sinais de Vida no Planeta Minas”, onde são delineados os perfis de cinco mulheres mineiras, mulheres “além do tempo que viveram”: Dona Olimpia de Ouro Preto, Xica da Silva, Dona Beja, Tiburtina e Angela Diniz. Mulheres que se tornaram símbolos de uma reação germinada ao longo dos séculos na história brasileira. Os “Sinais de Vida” que emitiram e continuam a emitir, são perceptíveis numa sociedade que revelou ao mundo fenômenos como Drummond, Guimaraes Rosa, a turma do Clube da Esquina. É tanta riqueza e variedade que só um Planeta para caber, como bem explicitou Gabeira. A riqueza de Minas, entretanto, a principal riqueza não são as figuras de proa da cultura, da literatura, muito menos os minérios. A riqueza de Minas está nas sutilezas cultuadas entre sua gente. 


 

Ao longo da história dos povos existem as grandes narrativas, as grandes epopéias, mas igualmente existem os pequenos dramas, as alegrias miúdas, as vicissitudes das pessoas comuns. Pequenas lutas, pequenas causas que juntadas formam e enraízam-se, crescem em arvoredos: Wilson Dias, cronista da alma mineira, com sua mansidão capta os pequenos tesouros que permeiam o dia-a-dia. Não é exagero dizer que Wilson é uma “voz do povo”; não apenas o tradutor dos sentimentos do povo mineiro: é o próprio povo. Voz ativa.



 

 

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