UMA BREVE NOTA SOBRE SEU NELSON DA RABECA, ARTISTA DO POVO

Em 22 de abril de 2022, o mundo da música perdeu seu Nelson da Rabeca. A história de seu Nelson dos Santos, mundialmente conhecido como seu Nelson da rabeca é por demais conhecida. Entretanto, vai um breve resumo para prováveis incautos:

Nelson dos Santos, natural de Joaquim Gomes, Alagoas, sem saber ler ou escrever, trabalhou a vida inteira na roça, principalmente no duro trabalho de cortador de cana, um dos trabalhos mais brutais que existe no campo. Já era aposentado quando, em visita à casa da filha, viu na televisão alguém tocando um violino e se apaixonou de imediato pelo instrumento. Decidiu que teria um daqueles, até  saber o preço proibitivo para suas parcas posses de aposentado rural. Mas não desistiu: já que não podia comprar, ia ele mesmo construir um. Tempo tinha, madeira também, ferramentas. De posse de machadinha, formão, canivetes, lixas, etc., pôs mãos tendo como modelo fotografias e desenhos. Fez direitinho, encordoou, fez o arco, tudo certinho. Mas na hora de tocar, o som não era exatamente igual ao que ouvira na televisão na casa da filha. Ele ainda não sabia, mas havia acabado de construir uma rabeca, um dos instrumentos mais característico do nordestino. E mais, uma rabeca original, com sua marca.


 

Assim foi descoberto um luthier que faria história nas próximas décadas. Nascia também um compositor e executante genial, para quem os elementos à sua volta eram a principal inspiração. Chamou atenção do mundo musical ao ser "descoberto" pelo rabequeiro e pesquisador José Gramani, que ficou encantado com a riqueza timbrística, que tinha muito a ver com sua forma de escolher e preparar a madeira. Não deve ser por acaso que seu disco mais conhecido seja O Segredo das Árvores. Ao escolher cuidadosamente a madeira – sua preferida era a jaqueira, bonita e resistente, como ele dizia – é bem possível que “conversasse” com a mesma e assim se inteirava de seus segredos e quais os procedimentos indicativos dos respectivos processos de construção e acabamento. Afinal, suas rabecas tem personalidade e praticamente vida própria. Duas delas especialmente conhecidas são Zéfinha e Ciça, usadas por Kátya Teixeira. Não é exagero dizer que na feitura de um instrumento existe uma simbiose determinante entre madeira e construtor e mais tarde entre instrumento e executante. Gedeão da Viola falava da magia incomum entre viola e violeiro; Indio Cachoeira e Zé Côco do Riachão, idem. O segredo? Conhecer e respeitar, como em muitos outros aspectos da vida e de pessoas, culturas, etc. 


 

Algo que precisa ser observado por qualquer um que procure conhecer a arte de seu Nelson é o importante conhecimento nele sedimentado da arte popular alagoana, que lhe foi dado a conhecer desde o berço e até antes.  Vendo e ouvindo seu Nelson tocar, a maneira vibrante e compenetrada com que ele se dedica, ao mesmo tempo sério e brincalhão, fica difícil determinar onde termina o homem e começava o instrumento – ou vice versa. Ocorre que a arte dos folguedos, dos ritmos, das harmonias, dos versos, tudo isso se misturava dentro dele de uma forma que ia além do imediatamente compreensível. Isso ficava evidente quando praticava improvisos  com seu parceiro constante dos últimos anos – além de sua esposa, dona Benedita: Thomas Rohrer.


 

Rohrer, músico suíço radicado no Brasil há mais de duas décadas, que teve formação erudita e cujo primeiro instrumento foi o violino, foi levado à rabeca pelas mãos de Zé Gomes.

Zé Gomes e Zé Eduardo Gramanni , podem ser considerados como aqueles que levaram a rabeca para outro patamar (ia escrevendo ‘elevaram’, mas não sei se esse termo é correto, pois transmite uma ideia de que a conduziram para um nível hierárquico ‘superior’ e isso talvez não seja a análise correta. Melhor mesmo ficar com o termo ‘levaram’. Levaram a rabeca para outros caminhos além daqueles secularmente conhecidos).

José Eduardo  Gramani, autor do célebre e hoje raro disco “Mexericos da Rabeca”(Com o Duo Bem Temperado, o cravo de Patrícia Gatti, com participação em algumas faixas das vozes de Ana Salvagni, Kátya Teixeira, Dércio Marques, Daniela Gramani, Dani Lasálvia, a cítara de Marcus Santurys, a viola caipira de Ivan Vilela), conduziu seus estudos e experimentos com a rabeca para uma leitura erudita, um desses mistérios que só o gênio profético de Gramani pôde captar. Para ele, esse instrumento fabricado e tocado de maneira autônoma em lugares diferentes do Brasil, com formatos diferentes, afinações idem, oferecia a oportunidade de sempre parecer um instrumento novo, mesmo sendo antiquíssimo, com certeza mais antigo que o violino, originário provavelmente do Oriente Médio. Gramani encontrou elementos eruditos de vigorosa consistência e partindo dele, isso é para se levar muito a sério. Pena que ele tenha interrompido sua missão tão cedo, aos 50 e poucos anos, mas deixou um legado impressionante, felizmente aos cuidados da UNICAMP. (Lembremos que o uso de instrumentos aparentemente ‘rústicos’ na musica erudita não é nenhuma novidade. No inicio da década de 1970 o violonista Geraldo Ribeiro gravava, creio que pela primeira vez na história, o LP “Bach na Viola Brasileira”, onde cinco peças do mestre alemão foram adaptadas para viola caipira: Prelúdio,  Loure, Gavota, Fuga, Chacona, todas originalmente compostas para violino solo).



 

   Zé Gomes não ignorava Bach, Paganini, Villa-Lobos, como lembra o critico musical Ênio Squeff no encarte de Tempos Interiores. Neste CD, não lançado comercialmente, ele celebra uma reunião de cúpula entre rabeca, viola de cocho e viola caipira. Depois dessa bem sucedida abordagem,  partiu para o improviso, vislumbrando outras mil possibilidades que aqueles timbres de sonoridade única ofereciam. Esse mergulho, a primeira vista insano, permitia que se realizassem sessões longuíssimas, de várias horas tocando  de forma ininterrupta. Realizaram juntos, Zé Gomes e Thomas, com participação do percussionista Fabio Freire, um disco que poderíamos denominar “conceitual”, pois executam as rabecas num incessante e frenético pulsar, ‘passeando’ por ritmos nordestinos, recriando sons, preenchendo espaços de maneira inusitada. Esse disco infelizmente não foi lançado e provavelmente jamais o será. É uma pena, pois provavelmente  seja o documento sonoro inicial dos improvisos com a rabeca. Ou ao menos, dos primeiros.


 

Depois de ser apresentado à rústica rabeca, Thomas Rohrer,  deixou de lado o violino para lhe dedicar total atenção e há anos corre mundo, sempre apresentando-se em pequenos espaços, uma vez que seu público não é o das multidões. Sua proposta é incomum: convidar os ouvidos treinados para a musica convencional  a experimentar outros timbres. Participa de inúmeros grupos e a característica que os une é a ausência de ensaios: Coletivo Abaetetuba (Thomas, Antonio Panda Gianfratti, Rodrigo Montoya, Márcio Matos, Luiz  Cubeisi e outros), A Barca, Quarteto Original (Thomas, Carlinhos Antunes, Chris Stout, Rui Barosi), além de parcerias musicais com grupos de ballet, etc. Mas foi com seu Nelson que Thomas formou sua parceira mais duradoura, só interrompida pela morte. A afinidade entre esses dois homens de idade, origem, cultura diferente era aparentemente improvável. Mas quem os via se apresentando nos palcos do mundo, assim que começavam a tocar, imediatamente percebia-se a alquimia, quase inexplicável entre os dois – às vezes com a presença do percussionista Gianfratti. Nos intervalos, seu Nelson dizia que Thomas era como seu filho e Thomas confirmava: o amava como a um pai. O tempo de um show era muito curto para a alegria que transbordava, contagiante. E o público compreendia porque o suíço Thomas Rohrer é considerado o mais brasileiro dos rabequeiros, com participação marcante em trabalhos de Kátya Teixeira, Manuel de Oliveira, por exemplo.

Certa vez, intrigado pela desenvoltura de seu Nelson naqueles improvisos que lembravam música futurística, depois de uma apresentação, tentei extrair do parceiro Thomas algo que explicasse a atração daquele senhor nordestino já com mais de 80 anos, que não sabia ler, pela beleza do improviso. Fui sincero na pergunta, mesmo arriscando a quase beirar a indelicadeza, mas eu precisava saber:

- Thomas, seu Nelson realmente curte o improviso, ele de fato ‘viaja’ no improviso? O Zé Gomes eu entendia perfeitamente, era um músico que deliberadamente buscava novos experimentos. Mas, e seu Nelson? Como se explica essa curiosidade, quando já seria mais que suficiente ser um grande luthier e um extraordinário rabequeiro tradicional?

Thomas me explicou da seguinte forma:

- As vezes ficamos tocando ininterruptamente tardes inteiras e entramos pela noite tocando variações de um mesmo tema. E se deixar, é capaz de ficarmos uma semana tocando sem parar... 

 


 Minha indagação, típica de um observador leigo, estava mais do que satisfeita e na verdade confirmava a primazia da sabedoria ancestral que as comunidades carregam consigo, transmitindo de geração a geração. Mas seu Nelson não apenas era um depositário do conhecimento ancestral, ele intuía as novas direções (outro grande artista popular que podemos alinhar nesse padrão foi o violeiro e artesão Índio Cachoeira. Algumas afinidades eletivas podem ser evocadas nos seguintes artistas: Seu Nelson/Antonio Travadinha, de Cabo Verde; Indio Cachoeira/Tião Carreiro/John Lee Hooker, do Mississipi. Todos músicos de origens díspares, capazes de ‘conversar’ sem trocar uma única palavra...).

Thomas e seu Nelson lançaram juntos , em edição do SESC São Paulo, o CD “Tradição Improvisada”, com participação de Panda Gianfratti e dona Benedita. Esse trabalho fornece uma pequena ideia do gigantismo da arte popular que, confirmando uma profunda convicção que tenho, está, sim, ancorada num passado remoto e ao mesmo tempo aponta para o futuro. 


 

E como a responder minha curiosidade a respeito da inesgotável busca de seu Nelson, deixo com ele a última palavra deste breve relato:

“...a gente quanto mais toca, mais aprende. Não pode ficar somente naquilo...(ou seja, na mesma toada, tocando do mesmo jeito). Se não, quando a pessoa vai tocar num lugar, quando chega e começa, eles já sabem o que a pessoa vai tocar. Então, a gente tem de tocar a coisa mudada!


 
P. S.: Ao Thomas: não é só você quem ficou órfão de seu mestre. Todos ficamos, o Brasil ficou órfão. Mas nos conforta  a certeza de que onde ele estiver, vai estar uma festa danada e não me espantarei se nas representações futuras de anjos, em vez de liras, estarão a tocar rabecas!

 

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