NO MEU CANTO, DE JÚLIO SANTIN

O terceiro CD de Júlio Santin, o violeiro da pequena  Irapurú, no extremo oeste paulista, região conhecida como Pontal do Paranapanema, é puro deleite, exemplar vivo da beleza silvestre e rústica que impera por lá. 

A música daquela região, que foi a última região do Estado de São Paulo a ser desbravada, chega a nós como água fresca brotada direto da fonte. Nem os conflitos sociais que por vezes explodem por lá ou a implacabilidade dos fenômenos naturais – como a geada de 1975 - nem o avassalador “progresso” que alcançou à região, destruindo modos de vida, nada disso arrefeceu o fascínio que o lugar mantém vivo no coração dos filhos da terra. 


 

Região de fronteira, a cerca de 60 km do Mato Grosso do Sul (MS), relativamente próxima a Paraguai. Esteve por muito tempo isolada, entretanto, por ser região de fronteira, foi sempre permeada de sotaques. A música sempre foi o modo de lazer mais comum e acessível, seja como divertimento, animando bailes e quermesses ou como ofícios religiosos, nas Folias de Reis, obrigatórias em determinada época do ano. .

A música nos chegava nas ondas da Rádio Nacional através do Programa do Edgar de Souza, que toda noite, das 8 às 9 horas, apresentava atrações musicais – Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, Zico e Zeca, Zé Carreiro e Carreirinho, Zilo e Zalo, Vieira e Vieirinha, Cascatinha e Nhana, Jacó e Jacozinho, Tibaji e Miltinho, Duo Glacial (Miguel e Aninha), Irmãs Galvão, etc. Por mais modesta que fosse a moradia de um roceiro, a presença do rádio era obrigatória e a música preenchia a vida marcada pelo trabalho na terra que garantia uma sobrevivência nada poética, porém, variada em vivências que o contato direto com a natureza proporcionava. Os casebres simples, de pau-a-pique ou de madeira, não raro ostentava junto aos instrumentos de trabalho um instrumento musical. Assim, a viola caipira ou violão ou pandeiro ou bumbo ou cavaquinho dividia espaço com enxadas, enxadões, foices, facões. Por vezes uma sanfana, mais rara devido ao preço exorbitante para um roceiro. Nos fins de semana, nas pequenas vilas (chamadas “patrimónios” ou corruptelas) os bailes eram igualmente obrigatórios e o que não faltava era músicos e cantores, e dos bons, que deixavam de lado os instrumentos de trabalho para exercitarem seus rústicos e calejados dedos nos outros gêneros de instrumentos. Como instrumentos custavam caro,  fora do alcance da maioria, não era raro a construção de instrumentos pelos próprios trabalhadores. Muitos “luthiers” nasceram assim, pela pura necessidade, sendo o mais conhecido o Indio Cachoeira, extraordinário compositor e violeiro, que anos depois formaria a segunda dupla Cacique e Pajé. (Essa dupla, que fez grande sucesso à época, merece um estudo a parte, pois se apresentava fantasiados de índios, tornando os indígenas protagonistas da vida social, eles, indígenas, tão presentes na vida do país, mas nunca como protagonistas.)

                                                               Radio Semp, a pilha, 4 faixas

 

                                         Edgard  de Souza, locutor e apresentador. Radio Nacional

                                                              

                                                Cacique e Pajé, dupla sertaneja

 

                              José Pereira de Souza, o Indio Cachoeira, violeiro, luthier, cantor, compositor
 
                           "Seu" Eujácio Rocha, sanfoneiro e lider do antigo grupo Os Tangarás

Essas rápidas referências, feitas de viva memória, de tempos que remontam minha infância nos anos de 1960 e início dos anos 1970, tem o intuito de lembrar a riqueza musical que era ali produzida. Não obstante o isolamento geográfico, por lá transitavam gentes vindas do nordeste brasileiro, de Minas Gerais, do então Grande Mato Grosso (antes da divisão que se faria depois), muitos imigrantes e seus descendentes, na sua maioria italianos, espanhóis, japoneses, sírio-libaneses. Campeiros (vaqueiros) chegados do Rio Grande do Sul ou do Paraguai com seu violão nas costas. Guarânias, huapangos, xotes, chamamés, tangos, boleros e até músicas andinas vinham se misturar aos ritmos caipiras convencionais, como catiras, cateretês, modas de viola, etc. A música sertaneja de raiz naqueles antanhos era cultuada através dos grandes artistas nacionais, mas também era cultivada pelos artistas locais. Júlio Santin, nascido na segunda metade dos anos 1960 é, pois, um legítimo herdeiro de uma tradição que nem a catastrófica Geada Negra, que devastou as plantações em 1975, nem a imposição da plantação canavieira, que fez com que milhares de trabalhadores (minha família inclusa) fossem expulsos da terra vindo habitar as periferias de São Paulo.  Santin, de uma família de descendentes espanhóis, pode-se dizer que seja um autêntico filho da tradição – embora em sua época o auge do “movimento” musical da região tivesse diminuído drasticamente, embora não desaparecido. O espectro das ondas sonoras permaneceram no ar , provavelmente irrigadas e mantidas pelos pequenos sitiantes que puderam por continuar na terra, inconscientemente mantendo de pé a importante tradição musical. 


 

Ao longo dos anos, alguns traços, brilhos fugazes  de uma vida que outrora brilhava intensamente tem surgido e dado ao mundo verdadeiras pérolas: o hoje saudoso Indio Cacheira, de Junqueirópolis, um dos grandes artistas que este país já viu; “seu” Eujácio Rocha, de Irapurú, sanfoneiro e líder do grupo Os Tangarás; a dupla Mauro Silva e Oliveira e Júlio Santin, de Irapurú; Bruno Sanches, de Regente Feijó e esperamos que outros existam nas pequenas e médias comunidades que conseguiram sobreviver na vasta região, mesmo sufocados pelo deserto verde dos canaviais, a se perder de vista...

Santin chega a seu terceiro CD com a consciência em paz aqueles estão certos de terem feito a  a opção certa dentre as escolhas que a vida lhe proporcionou. Médico por profissão, jamais abandonou seu torrão natal e tudo o que o mesmo significa, a perene gratidão que lhe deve em termos de “formação” como ser humano; misturam-se o caipira da pequena cidade e o médico pediatra que trabalha num dos grandes hospitais do país. “No Meu Canto”, o terceiro disco, nele Júlio abre sua casa e o coração e nos convida a entrar e partilhar suas experiências artísticas e de vida. As faixas do disco não são apenas o desfilar dos ritmos regionais – o que já estaria de bom tamanho -, mas expressões de sentimentos que revelam a carnadura dos seres que preferem na vida ser autênticos, seja qual for a vida, a profissão que levam. Fosse Júlio engenheiro, astronauta, balconista, futebolista ou diplomata, a veia caipira circularia latente em cada fibra de seu ser.

O disco:

Começa pela dolente “Flor Guarani”, que, diferente dos trabalhos anteriores, parece prenunciando outras vivências do músico e do ser humano, indicando reflexões, facetas apenas sugeridas em trabalhos anteriores;

Mas a seguir “Sapecado”, irresistivelmente um retorno às origens;

A terceira faixa, “Choro das Rabecas”, soa muito nordestina. Rabequeiros não era comuns nos tempos que por lá vivi. Mas seriam bem vindos às rodas musicais;

“Contradança” sugere um baile na roça, só faltando a sanfona de “seu” Eujácio Rocha para vislumbrarmos as silhuetas ondeantes, alumiadas a querosene, do quadro de Portinari, que ilustra o CD de “seu” Eujácio;

“Saudade”, melodia ensimesmada, envolta em certa melancolia. Talvez por lembrar um tempo irremediavelmente perdido, o verde-sujo das roças de amendoim, milho, feijão, os pomares outrora carregados de tanta doçura, substituídos, tudo e todos, pela monotonia dos canaviais que reduziu comunidades festeiras inteiras em escombros silenciosos;

Na sequencia, “Céu e Mar” ponteia o acordeon de Thadeu Romano que parece continuação do tema anterior, um quase lamento pelo baile interrompido que, no entanto permanece na memória, mesmo sem os rodopios danzantes campestres;

“No Meu Canto”, a faixa autobiográfica, confecional. O canto da memória, indestrutível, onde são guardadas as preciosas relíquias:

“Gerações”, ponteada pelo percussivo baixo na parte inicial, aos poucos sacode a poeira e convida as gerações do antes, do futuro e do agora para se reunir e prosear e dançar:

“Matutada”, a música mais visual do disco. Presenciamos assombrados, como se estivéssemos nos terreiros de terra batida, a recriação de passos de dança, lembranças  dos ancestrais hispanos chegados em terras brasileiras. Em minhas lembranças (sou também filho daquela terra, da mítica Jaciporã, vilarejo que tem em suas cercanias o Pontal inteirinho!), havia distinção entre o que se chamava caipira e o matuto, sendo este último o sujeito cismado, caladão, um tanto misterioso. Nesta faixa, como em exercício de prestidigitação, o  matuto é convidado a entrar na festa. A cena relembra, provavelmente de forma inconsciente, nos tempos dos antigos bailes, ao sujeito que chega num baile onde não foi convidado e fica fora, rodeando, com receio de entrar e o convidarem a sair – fato, a propósito, pouco comum. A praxe costumeira era convidar o recém chegado, mesmo forasteiro, a participar;

“Mar Distante”. Qual caipira não sonha com o distante mar? É comovente a história que Júlio conta a respeito da primeira vez que “seu” Eujácio viu o mar. Eu próprio fui ver o mar já adolescente, depois de imaginá-lo sob mil formas. A lembrança que ficou desse primeiro encontro: mistério e imensidão, um sem-fim;

“Sonho de Luna”, brota atemporal. Um sonho para despertar o adormecimento dos corações, o sonho que permeia o frescor das manhãs nascentes e o acolhimento crepuscular;

“Piedade”, de Levi Ramiro, é musica que cabe em todo bom disco. É como uma boa cachaça, combina com tudo. No presente arranjo, um passeio pelo campo, pelas pequenas invernadas por onde se cortava caminho, mas era preciso estar atento pra não dar de cara com alguma vaca de cria nova, que pode ser agressiva se pressentir ameaça a seu rebento.

Assim termina o disco. Júlio Santin é o autor, mas todos da Alta Paulista, do vasto Pontal, nele se sentem representados.

Finalizamos repetindo, na íntegra, as palavras do próprio músico. O extremo cuidado com cada ítem diz muito não apenas da obra em si mesma, mas do quanto a mesma reflete o ser humano e seus valores. A essa altura da carreira, autor de peças confeccionadas com capricho de ourives, Júlio constrói um importante totem/tronco dedicado a arte e a tradição, como guias mestras da existência de uma comunidade, uma cidade, uma região, um país, um continente, o próprio mundo. Detém-se em sua aldeia irapuruense e dali manda seu recado, espalhando a necessidade da compreensão e aceitação. Em tempos extremos, o recado caipira lembra que é na soma das diversidades que vencemos as adversidades e nos tornamos capazes de construir um mundo mais justo, mais harmonioso e melhor.

Um pequeno texto no encarte é uma receita do doutor médico, em caligrafia legível , repleta da sabedoria do bom viver.

No meu canto me refugio na paz da natureza. O silêncio invade a alma e transcendo em busca de melodias espalhadas pelo ar.  Algumas viram canções que traduzem minha percepção de mundo, das pessoas, do sentimento mais escondido e do amor. Viajo no rastro do sol sempre seguindo a trilha caipira da minha origem. Lanço o pensamento além do céu azul e do mar distante.”

(Júlio Santin, de Irapurú para o mundo)

 

                   Kátya Teixeira, Levi Ramiro, o autor e Júlio, no SESC Consolação. No palco, Wilson Dias
 

 

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