ELIS

 

Assisti ao filme “Elis”, com Andrea Horta no papel de Elis Regina movido por uma grande curiosidade: como seria alguém representar uma personalidade tão singular como foi Elis Regina?


                                                                              Andrea e Elis


É muito provável que cada um de nós que conhecemos sua carreira curta, porém, muito intensa, tenhamos cada um uma maneira peculiar de “sentir” seu trabalho. Partiu cedo, muito cedo, na flor da idade, tendo realizado uma obra definitiva. Como um Mozart, como Noel Rosa ou James Dean ou aqueles famosos ícones que partiram aos 27 anos, como Janis Joplin, Jimmy Hendrix, Jim Morrisson, etc.

Pessoalmente Elis me marcou de forma decisiva por ter me mostrado que música é algo que vai muito além da “estética”, ou seja, que música é muito mais do que tocar ou cantar bem.

Na época, recém chegado a São Paulo, pouco mais que um adolescente vindo literalmente da zona rural de Junqueirópolis, interior paulista, “música” fazia parte de minha vida basicamente como entretenimento: música agradava ao sentidos e estava de bom tamanho. Ou gostava ou não gostava, sem maiores elocubrações. Era um tempo em que ouvia muito rádio, e entre meus artistas preferidos misturava Tião Carreiro e Pardinho, José Augusto, Roberto Carlos, Vanderléia, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Raul Seixas, Alvarenga e Rachinho, Duo Glacial, cascatinha e Nhana, etc, (Não faz muito tempo, reencontrei uns amigos da infância – 43 anos depois! –  que  me garantiram que durante o trabalho no cafezal eu ficava o tempo todo cantando. Confesso que não me lembrava. O que lembro é que na fábricas  não era permitido cantar  e de algum modo, perdi essa forma de memória: cantar durante o trabalho.)


Nessa época, como disse acima, meu gosto musical, minha “estética” musical se fazia presente em gostar ou não do artista. Elis mudou isso. Ela me fez perceber que música estava além do cantar, pois eu apreciava aquela voz delicada, forte e cristalina como se ela impusesse ao ato de cantar uma luz  colorida e única, distinta; como se ela estivesse acima da própria música. Era, creio eu, uma forma rude de perceber a diferença entre cantar e interpretar! Elis não cantava, interpretava e seu modo de interpretar atingia direto o coração. Ou coração e mente, embora eu desconhecesse completamente, na época, o aspecto politico da canção. O menino chegado da roça ouvia Geraldo Vandré e Dom & Ravel sem se dar conta da "mensagem" implicita ou explícita! Literatura: Eu lia Agata Christie até cair-me nas mãos as memórias de Fernando Gabeira e Fernando Sabino. Em suma: eu era um jovem alienado que lentamente foi tomando consciência de um Brasil diferente do que aprendia nos livros escolares. Ouvir Elis foi uma importante etapa nesse processo porque eu percebia coerência naquilo que ela fazia.


Pois bem: enquanto eu fazia essas descobertas pessoais tão alvissareiras, pois mudariam minha visão de mundo, numa tarde qualquer – ou teria sido de manhã ou meio dia? Só sei que fiquei profundamente chocado quando ouvi no radio a noticia que Elis Regina havia morrido. Foi duro, pois ela estava no rol daquelas personalidades artísticas que podia chamar imortais. Procurei informações, não como curiosidade mórbida, mas com uma vã esperança de que fosse um engano. Não era. O mundo musical deveria prosseguir sem a melhor cantora brasileira e o resto é história.

 


Por isso relutei um pouco em assistir ao filme tendo como interprete Andrea Horta. Pois não era uma questão de “interpretar” de forma talentosa, mas de compreender sua personalidade efervecente e trazer à publico; não era vestir o figurino Elis e repetir seus trejeitos, mas de trazer do fundo da alma aquele jorro de emoções que talvez só caibam numa definição: furacão! Elis tinha a força de um furacão num sorriso de menina sapeca! (O segredo dessa “força estranha” continua intacta, inexplicável).

 



Que dizer do filme? Vejam o filme. E verão flashes de quem foi a “pimentinha”. Embora não conheça como deveria sua história, creio que os principais episódios de sua vida estão retratados. Inclusive a famosa entrevista, onde ela expões uma pequena ponta do iceberg que era sua angústia contra os poderes que a oprimiam, entre eles os esquemas infernais das gravadoras  empenhadas em fazer dos artistas meros porta-vozes de emoções baratas e ritmos  cretinos, superficiais, a serviço da indústria fonográfica e não do que dizia e sentia o artista, do que queria transmitir. Lá pro fim da entrevista, sempre criticando severamente os esquemas das gigantes, onde “quem está dentro não sai e quem está fora não entra”, lança uma profecia que hoje entendemos muito bem:

vem aí uma censura muito pior que a dos militares”, pois dos milicos não poderíamos esperar mesmo outra coisa. Os novos censores não tem cara, mas muito poder; poder de definir o que o público “quer” ouvir através de falsos programas jornalísticos ou dramatizações  falsificadas onde induzem o povo  a ouvir isto em vez daquilo, vestir  tal e tal roupa, tomar refrigerante, usar esse ou aquele banco, o que comer. Ouvir a  música ou ver o filme que o “mercado” oferece.

Elis estava certa: a censura dos tempos de hoje é muito mais danosa, pois roubam a nossa vontade, nossa “alma”. E ainda agradecemos as opções, as variedades...

 

Senti falta de três referências que marcaram profundamente nossa MPB: os encontros fundamentais que ela realizou com Milton Nascimento e Renato Teixeira (dentre outros), através de Travessia e Romaria (dois ícones de nosso cancioneiro) e o encontro com Adoniran Barbosa que revela  uma criatura extraordinariamente generosa. Esse encontro está registrado no filme sobre Adoninan, “Meu Nome é João Rubinato”, de Pedro Serrano, 2020. Quem não viu esses 10 minutos mágicos sem se enternecer com aquelas duas almas de crianças de talento gigantesco andando de braços dados por Sampa? Puro delírio de alegria e autenticidade de dois artistas a serviço da Senhora Arte, Senhora Tentação como diria Cartola...


                                              Adoninan mostra Sampa pra Elis: Vila Itororó





 

 

Adbox