KÁTYA TEIXEIRA NO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO COMEMORA 30 ANOS DE CARREIRA

 

Neste ano da graça de 2024, a cantora, compositora e pesquisadora paulistana, filha de alagoano e mineira, Kátya Teixeira, comemora 30 anos de carreira e nos presenteia com um show que fará história!


 O palco não poderia ser melhor e mais adequado: o Centro Cultural São Paulo está em nossa memória afetiva há décadas. Por lá passaram todos os artistas  do chamado circuito alternativo, chamados independente, ou seja, aqueles que não se apresentavam nos grandes palcos. Na época a divulgação das apresentações corria de boca em boca poucos dias antes das apresentações e no dia, filas de gente feliz se formavam à porta de entrada. Eram os tempos de Hermeto Pascoal, Diana Pequeno, Dércio Marques, Vidal França, Marlui Miranda, Vital Farias, Luiz Carlos Bahia, Doroty Marques, Zé Gomes, João Bá, Renato Teixeira, o Raíces de América, Tarancón, Terramérica, etc. são apenas uns poucos nomes de que me recordo, de memória. Eram chamados “alternativos”, mas o que atraía mesmo o público era a qualidade. A proximidade do palco criava um atrativo, pois transmitia a sensação de que estavam no terreiro de nossas casas.

O CCSP, tem história e cada um de nós tem sua versão singular história, ligada às nossas melhores lembranças dessa cidade de todos nós... Passou uns tempos no ostracismo, mas agora retorna em alto estilo. O show de Kátya Teixeira no próximo 26 de julho é uma grande noticia. Quem for, não esquecerá!

 

O CENTRO CULTURAL SÃO PAULO, LUGAR DE IMPORTÂNCIA ESTRATÉGICA

Localizado num local de fácil acesso, ao lado da estação de metrô Vergueiro, o complexo abriga salas de espetáculos, cinema, amplos espaços livres, bibliotecas, um acervo valioso de documentos relativos à nossa história cultural. O mais valioso deve ser a edição completa da Missão de Pesquisas Folclóricas, volumoso material sonoro coletado durante três anos no final da década de 1920, por uma equipe munida com o que havia de mais moderno para a época. A proposta, Idealizada e organizada por Mário de Andrade, então Secretário de Cultura do Estado de São Paulo unia recursos de última geração – equipamentos de audiovisual, veículos, rádio comunicadores – com recursos arcaicos, como o uso de animais de tração/carroças, carros de boi, barcos a remo/pirogas onde não havia estradas.

Para se ter uma pálida ideia da importância e abrangência da pesquisa, uma coleção de 6 CDs e um libreto, que pode ser adquirida à preço de banana nas lojas do SESC, contém “apenas” 10% de todo material gravado em áudio. Todas as manifestações musicais passíveis de serem mapeadas nas regiões  Sudeste, Nordeste e Norte do Brasil foram coletadas. Considerando as enormes dificuldades tecnológicas e de logística da época, foi um trabalho gigante, somente comparado ao realizado pelos Lomax, pai e filho, que vasculharam o interior dos Estados Unidos, nas pequenas comunidades, ranchos, fazendas de algodão e até nas prisões, gravando e coletando canções “folk”. É a origem do que a indústria, deslumbrada, etiquetou como “folk-songs”, documentos sonoros e sociais, hoje em dia sob a guarda da Biblioteca do Congresso, mas que inspirou e continua inspirando o mundo da musica: de Bob Dylan ao rock inglês. 

De facto, trabalhos como a Missão de Pesquisas, o esforço dos Lomax, o fundamental trabalho  de pesquisa/divulgação/produção de Cornélio Pires até chegar a artistas do nosso tempo – ou próximos ao nosso tempo, como Ely Camargo, Inesita Barroso e Rolando Boldrin, dentre outros. Mas também somos devedores de cada pequeno grupo nos terreiros de quilombolas e as danças indígenas nas aldeias, nos ofícios religiosos, nas Folias de Reis e congadas desde o litoral e interior do Brasil; gratidão também aos isolados habitantes das  montanhas do Cáucaso, nas Balkans, aos pescadores das Ilhas Maldivas, aos pequenos núcleos de moradores das aldeias do vasto continente africano, pela vasta Ásia (India, China, Japão),: gratidão aos povos andinos, da América Central, enfim, em todos os lugares onde grupos de moradores que se reúnem para cantar e contar histórias, batucar, cirandar e cantar: toda essa gente ajuda a preservar a memória do mundo.

A  Pesquisa de Missões Folclóricas ou o trabalho hercúleo levado a cabo pelo catalão Jordi Savall ou ainda a  extensa pesquisa levada a cabo por Ricardo Kanji sobre a História da Música Brasileira – Período Colonial (o projeto era lançar 6  discos, mas esbarrou na falta de patrocínio. Foram publicados dois). Todo o resgate das tradições musicais, que desdobraram, por exemplo, na obra de Ariano Suassuna e o Quinteto Armorial, tudo isso prova que a tradição não é um “arquivo morto fossilizado”, e sim possibilidades de diálogo  traçado entre o passado que assim permanece  vivo e as novas gerações, das quais Kátya e um número incalculável de artistas profissionais e amadores fazem parte.

 

PEQUENO ADENDO SOBRE A PESQUISA DE MISSÕES FOLCLÓRICAS:

O principal mérito foi a descoberta dos  novos brasis, num mergulho profundo, vertiginoso  no nosso interior mais profundo. Mais importante que a descoberta em si, foi ter mostrado o caminho, inspirador, que décadas depois foi seguido por Marcus Pereira e sua coleção de 16 discos retratando a Música Popular (do sul, sudeste, nordeste e norte); entre o final de 2004 e começo de 2005, o grupo A Barca, através do Projeto Turista Aprendiz, refez o caminho da equipe de Mário de Andrade, percorrendo 10.000 por 9 estados brasileiros, de São Paulo ao Pará.

O que podemos aferir dessas ações ao longo desses quase 100 anos? A conclusão é positiva, apesar de nós brasileiros sermos considerados pejorativamente, por nós mesmos, como um “povo sem memória”. Ora, debruçando-nos sobre a história e olhando ao redor de nós, vemos que existe um continuo trabalho de preservação e resgate da música tradicional. Como já citado pouco atrás, Inesita, Boldrin, Ely Camargo, Teo Azevedo, etc. deram cada qual seu passo, bebendo da mesma fonte, inspirando as gerações a continuarem.

Contrariando o pessimismo e certas conclusões apressadas, nos damos conta de que a cultura brasileira está mais viva do que nunca e resiste bravamente, não obstante a ação deletéria imposta pelos meios de comunicação de massa e mesmo por instituições que teriam por obrigação fazer o inverso, ou seja, estimular e favorecer os elementos que forjaram ao longo dos séculos nossa identidade brasílica. É uma luta constante, permanente, travada de geração a geração, redescobrindo ritmos, melodias, expressões: o Projeto Dandô – Círculo de Música Dércio Marques, empreendido e coordenado por Kátya Teixeira segue os caminhos da “Pesquisa de Missões Folclóricas”, da Coleção Musica Popular, de Marcus Pereira, d’A Barca, d’Os Gaudérios, d’Os Tápes. Esse grupo, Tápes, uma descoberta de Marcus Pereira, foi um ponto fulgurante de luz nos anos de 1970, estimulando  iniciativas pioneiras protagonizadas por jovens que então começavam, como  o Grupo Zambo e mesmo Dércio Marques que então iniciava sua trajetória, o missioneiro Noel Guarani e tantos outros – muitos anônimos, mas que seguem uma espécie de fio invisível que mantém irrigada por aquilo que é o alimento essencial da Alma Brasileira: a Cultura.

Kátya Teixeira, e dezenas, centenas – porque não? -  milhares de outros artistas, profissionais ou “amadores” é dessas pessoas que dedicam a vida, de corpo e alma, a descoberta, preservação e “transformação” de nossas tradições. Trabalho de garimpagem e ouriverssaria  no interior dos grupos espalhados pelos interiores dos brasis. Muitos podem estranhar a expressão “transformação” em se tratando de tradição, mas não há contradição nisso porque a cultura é viva e movente, se adapta às novas circunstâncias/situações; cultura e tradição permeiam e irrigam os movimentos dos povos. Um conto (ou uma música) adquire novas peculiaridades a cada vez que é contado/cantado. A canção “Cuitelinho”, recolhida no interior de São Paulo pelo zoólogo e compositor Paulo Vanzolini, é exemplo vivo. Outros: “O ABC do Preguiçoso” (Bahia), “Lundus do Urucuia” (Minas Gerais). A todas essas peças, volta e meia, são descobertos “versos perdidos”. Isso é verdade, mas também é verdadeiro o acréscimo de versos, num desafio de improvisos interminável. E assim se preservam as raízes ao mesmo tempo que se cria/recria/se desdobra cotidianamente. Acreditem: a cultura popular é uma fonte inesgotável, que se retroalimenta.

A vida e obra de Kátya se confundem com a cultura popular e tudo o que a cerca. Nascida e criada em meio de artistas e pesquisadores, ela não faz outra coisa na vida desde que se entende por gente. O que esperar da filha de Chico Teixeira e dona Carmem Pinheiro, da sobrinha de Vidal, Eliezer e Mazé; apadrinhada de Dércio Marques e João Bá? Acrescente-se a isso o talento, a voz privilegiada, um instinto igualmente privilegiado, a facilidade de identificar-se com instrumentos pouco comuns, como a rabeca e a viola de cocho. Munida de todos esses elementos, ela é capaz de tecer ricos bordados, à moda de Dércio e seus Versos Bordados.

 “Katchêrê” (Katxeré ou Katxeredekú), A Mulher Estrela, da mitologia Krahó, é aquela que, apiedada pela solidão humana, eventualmente desce a terra para nos fazer companhia; Kátya Katxêre Teixeira, transformada em Xamã e no exercício de seus poderes de transformação, transmuda música em função de cura. Esse é um de seus segredos, que foi desvendado por dona Maria Rezadeira, de São Gabriel, BA:

“Pra cantar uma cantoria, não carece saber (cantar), ali é um espirito que acompanha, uma voz...”  

O show do Centro Cultural poderá ser um insight de tudo o que ela produziu, apesar de achar improvável que 30 anos de caminhada e 8 albuns  possam caber num único espetáculo. Inquieta,  não se contentará com um “resumo” de sua obra. De seu bornal repleto de africanidades, indigenismos, folias, cirandas, heranças ibéricas, celtas, voos rasantes pelo Oriente Médio, deve surgir algo absolutamente novo, re-criações. Ela sempre surpreende!

Sua presença e a força misteriosa que a guia desde a subida no palco no Armazém bar, de Oswaldinho e Marisa Vianna, que a acompanha desde o primeiro disco e os trabalhos que se seguiram, pode ser pressentido no depoimento registrado no encarte de Lira do Povo, seu segundo disco e que define seu modo de ser e estar no mundo:

(...) ...caminhando nesses brasis, senti como se tivesse entrado n’algum conto, livro de história que já li. Só que então, é real. O cheiro, os sabores, os timbres, os ritmos, as pessoas, a música... Pude perceber a alma do mundo, algo atemporal, o grande caldeirão cultural e social. Num  piscar de olhos, não era mais a leitora mas sim narradora, ou melhor, trovadora cantando imagens que se mostram a minha frente. Em cada brasileiro, um mouro, um índio, um negro, um celta, um oriental... um cidadão do mundo! Assim eu sou, assim é ‘Lira do Povo’”.

A cantora/cantadeira do povo não se faz de rogada, se preciso for. Durante a maior tragédia que a humanidade viveu nos últimos séculos, a pandemia do CoronaVirus, ela não ficou indiferente e com a participação de muitos parceiros, desde músicos a artistas plásticos, produziu o álbum duplo, acompanhado de caprichado livreto: “Canções Para Atravessar a Noite Escura – Canções na Quarentena”.

“Seja o sonho bem vivido

Seja o pão bem dividido

Que o abraço seja forte

Que a paz aponte o norte

Do destino a se chegar”

(Trecho de Tempo  de Esperança, musica de Katya Teixeira, letra de Gildes Bezerra, do álbum As Flores do Meu Terreiro”

Ao longo dos anos, com ímpeto e delicadeza abre caminhos rompendo fogo e marés, desvelando e fincando raízes. Viaja o Brasil, conquista mundos desde o litoral brasileiro aos litorais e interiores ibéricos, com pausa em jardins, varandas e terreiros para beber água de “moringa de água fresca”, conforme diria João Bá. E retoma caminho!

“Quando ela solta a voz, tudo em volta estremece. É o despertar da alma primitiva do Brasil.”

(Joca Ramiro, montado em seu cavalo, o Murzelo Alazão, mandando recado de algum ponto do Ser-tão Paulistano)

 

 

 

SERVIÇO:

Katya Teixeira no Centro Cultural São Paulo/Vergueiro

Data: 26 de julho de 2024

Horário: 19 horas

Obs. Ao lado do metrô Vergueiro
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