Violas Encantadas é um nome bastante apropriado para esse grupo especializado em guitarras antigas portuguesas. Podemos aludir o reaparecimento das violas, num inédito contexto urbano nos últimos 40 anos - seja na terrinha ou nas terras brasilis, do lado de cá do Atlantico, terra esta que até meados do século XIX se falava nheengatu e era chamada nos círculo europeus de América Portuguesa, para distinguir das outras Américas, a hispana e a anglo-saxã. (A viola brasileira nasceu urbana, foi pra roça e nos últimos 40 anos, aproximadamente, voltou para a cidade. E existe até mesmo uma respeitável produção sinfônica, vide os trabalhos de Adelmo Arcoverde e Jayme Além).
As violas devem ter chegado ao Brasil nos primeiros anos da colonização e devido as enormes distancias e consequentemente isolamento, certamente adquiriram outras características e se desenvolvido de maneira completamente distintas das originais. Nas cidades – leia-se Corte no Rio de Janeiro – a viola foi sendo paulatinamente deixada de lado com a entrada em cena do violão, sobrevivendo entretanto nas comunidades mais afastadas (retomaremos o tema logo a seguir para não perder esse fio de meada).
Por volta da segunda metade do século XIX o instrumento de uso corrente nos salões da Corte Imperial era a “viola de arame”, de 10 cordas, instrumento de som delicado, mais apropriado às reuniões intimistas (é provável que a viola de arame , à época, ocupasse o lugar da guitarra barroca e/ou do alaúde de 5 cordas, tal qual nas cortes européias.) . No Brasil, a delicada “viola de arame” praticamente desapareceu com a chegada do violão de seis cordas, de som mais encorpado. A viola de 10 cordas sobreviveu adaptando-se ou se transformando em viola caipira ou ainda sobrevivendo em pequenos nichos de apreciadores de música antiga ou iniciados. A maior expoente que conheço é Gisela Nogueira, que a utilizou nos discos “Marilia de Dirceu” e “Viagem Pelo Brasil”, material antológico lançado pelo selo Eldorado. Na ocasião, nos mesmos discos, Edelton Gloeden tocou guitarra barroca. Nos trabalhos do Grupo Ânima, sua “viola de arame” é chamada na tradução para o inglês de Brazilian Baroque Guitar. De fato, são instrumentos quase semelhantes, a meu ver. Possuem um ancestral comum, pois todos se originam do Alaúde, instrumento singelo, porém, de origem nobre, que ocupa lugar de destaque na história da música. A palavra luthier, que designa ‘fabricante de instrumento”, vem da palavra lute, ou seja, alaúde em inglês. Devo essa informação ao medievalista Roberto Bach, cantor e compositar).
O brasileiro Fernando Deghi e os portugueses José Barros e Ricardo Fonseca, idealizadores do Projeto “Violas EnCantadas” provam que Brasil e Portugal tem mais do que o idioma comum. A maioria dos historiadores que se debruçam sobre o assunto concorda que o processo de colonização Portugal-Brasil ocorreu sob certas peculiaridades, que moldaram a relação entre colonizadores e colonizado.
Estamos longe de insinuar que o colonialismo luso foi bonzinho ou que nossas Iracemas ou Xicas da Silva seduziram e amoleceram corações os corações de pedra portugueses: colonialismo é o que é em qualquer tempo ou lugar, não há como transformar a opressão em belas histórias de amor e amizade. Entretanto, determinadas circunstâncias tornaram possíveis certas alianças em alguns momentos da longa convivência entre colonizado e colonizador. Não estamos falando apenas da propalada proximidade da Casa Grande e da Senzala, mas de improváveis alianças com os indígenas, sendo a mais conhecida a que foi protagonizada pelo jovem aventureiro português, João Ramalho, na época com menos de 20 anos, que depois de escapar de tribos hostis no litoral, de algum modo subiu a Serra do Mar e caiu nas graças de Bartira, filha do Cacique Tibiriça.
Tibiriçá não era um Cacique qualquer. Era uma espécie de Imperador, mandava e desmandava no Planalto Piratiniga. Ter o cacique como sogro fez vigorar uma aliança que foi crucial para os portugueses subirem a Serra do Mar sem se tornarem alvo das flechas e lanças do comandados de Tibiriçá. Para ilustrar, vale a pena relembrar um episódio fundamental para a história de São Paulo: no dia 9 de julho de 1562, uma poderosa confederação de tribos cercou a Vila de São Paulo - onde hoje se encontra a Casa de Anchieta, o Pateo do Colégio e algumas sedes de Tribunais de Justiça – com intenções nada amigáveis. Teria sido um massacre terrível não fosse a pronta interferência de Tibiriçá, com um numero inferior de guerreiros, mas bem treinados e corajosos. Não é a toa que os restos mortais do cacique estão depositados na crypta da Catedral da Sé, no Centro Velho de São Paulo. Quanto ao genro de Tibiricá, João Ramalho, ganhou algumas terrinhas entre Santo Amaro da Borda do Campo e Santo André da Borda do Campo (atuais bairro de Santo Amaro e a cidade de Santo André). Além das terrinhas, que fez dele um dos homens mais proeminentes de seu tempo, produziu numerosa prole (não foi fiel a Bartira) e teve vida longa e tranquila, nada mal para quem começou a vida no Brasil “matando onça no grito!”
Citei brevemente a história de João ramalho e Bartira para ressaltar que ao longo do tempo portugueses e brasileiros protagonizaram interessantes parcerias. Poderia ser muito mais, no campo acadêmico, por exemplo, mas fiquemos com a música. De cabeça, me acorrem: Do Tejo ao Tietê, com Chico Saraiva e Suzana Travassos e o recente Violas EnCantadas, com Fernado Degh, José Barros e Ricardo Fonseca. Destaque para Zeca Baleiro e Canções D’além Mar, um amplo recorte da música lusitana, desde o cancioneiro de Zeca Afonso ao rock português. Dois Mares, de Kátya Teixeira e Luiz Salgado, tratam, dentre outras coisas, do amalgamento sócio cultural, de como elementos e valores tipicamente portugueses não só adaptaram ao Brasil como ganharam vida própria, como a transformação da viola de arame lusa na viola caipira ou brasileira. Até personagens folclóricos foram forjados, como a transformação de São Gonçalo do Amarante, um vetusto senhor vestido de preto, cara severa a impor e respeito, mas que no Brasil vestiu roupas coloridas, aprendeu a tocar violas e se tornou protetor dos violeiros e, dizem línguas indiscretas, protetor das cortesãs. Fato é que o projeto inicial de botar ordem na casa, foi postergado indefinidamente.
VIOLAS EnCantadas: UMA ABUNDÂNCIA DE VIOLAS!
São nada menos que OITO violas tradicionais: viola Braguesa, viola Caipiresa, viola Beiroa, viola Campaniça, viola Ayla, viola Flor de Liz, viola Marieta e a Harpa Viola com suas impressionantes 30 cordas. O Projeto parece muito, mas na verdade, não é! Trata-se de um breve recorte, uma amostra do potencial do cante popular. Isso só é possível quando o talento e sensibilidade dos artistas são colocados a serviço da obra, em muitos casos, com séculos de existência.
Abaixo, algumas violas
O brasileiro os portugueses a principio, tinham em comum o amor pelos instrumentos antigos e o desafio de tornar a cultura tradicional capaz de despertar o interesse das novas gerações. Quem vê o resultado final assegura que foi a maior moleza tal a facilidade com que tratam temas separados por abissais distâncias. Contudo imagino o imenso trabalho de convergência que tiveram de traçar, sendo fiéis aos princípios, fincar pé na tradição e ao mesmo tempo mostrar que tem muito a dizer às novas gerações.
Ressaltamos a reverência por todos que vieram antes deles, por aqueles que traçaram a linha mestra de uma cultura musical muito antiga e que se revela com impressionante vigor. Onde seria tentador se valer do virtuosismo para preencher lacunas, eles se valem da contenção, conforme menciona o escritor Domingos Morais no breve, porém, essencial texto de encarte: “... um virtuosismo que ocultaria o que de mais essencial nos é revelado.”
Os três moços – Deghi, Barros e Fonseca – exploram o que está além do idioma e da magnifica técnica só comum aos mestres. Mergulham na alma ancestral que possuímos em comum e emergem redescobrindo universos sonoros que partilham com todos nós, ouvintes de hoje, nos convidando a com eles viajar na magia dos sons. E o fazem com inaudita alegria, como está claramente expressa na criativa capa do álbum.
As 14 faixas do álbum seguem um percurso onde cada faixa é uma estação, onde nos é permitido “descer” e conhecer a história que o lugar imaginário nos proporciona. Seis das cantigas/estações são peças solo do cancioneiro tradicional, com exceção do instrumental Cavalgada, composição de Deghi. As demais, num total de oito, são cantigas brasileiras e portuguesas cuidadosamente “bordadas”, onde não sabemos quem influenciou quem, mesmo que nos seja mostrada uma cronologia da criação das peças.
Enfim: a obra de arte é das poucas criações humanas que ultrapassam os limites do espaço/tempo, e muito antes da Teoria da Relatividade! Mesclam-se divino-profano-lírico, como nos “bordados” Padeirinha/Asa Branca ou Trenzinho do Caipira/Lá Vem o Comboio.
Em cada faixa/estação que visitamos ao ouvir, somos tomados de assalto por certa nostalgia. Talvez a mesma nostalgia que tomou o compositor – anônimo ou não (daí a peculiaridade de juntar/mesclar cantigas tradicionais adaptadas com autorais, como na faixa 9, Luar do Sertão/Saudades da Lua).
Portugal e Nós/Nós e eles: Ao longo de mais de 500 anos, compartilhamos acidentes e incidentes históricos. Herdamos mazelas, mas também progressos em diversas áreas do conhecimento, com a vinda do rei Dom João VI e a Corte para essas plagas, em 1808.
Nos dias que correm deveríamos recordar os versos de Drummond, Vamos de Mãos Dadas e todos dar-mos as mãos, como fizeram Fernando Deghi, José Barros e Ricardo Fonseca, especialmente em tempos onde a intolerância atinge níveis alarmantes. A intolerância, bem o sabemos, é consequência direta da ignorância que temos do nosso próximo. Ou seja, do medo. A partir do momento que conhecemos o próximo, podemos, quiçá, perceber que pode ser mais próximo do que jamais admitimos: pode ser nosso irmão. “Só respeita quem conhece” (Cacique Xavante Apowê).
Durante os duros anos de ostracismo, podemos dizer que as violas ficaram encantadas. Graças à dedicação, denodo e amor dos abnegados e fiéis admiradores, finalmente as violas se desencantam e retomam seu lugar na história
Assisti a apresentação do Violas EnCantadas nas dependências da UMAPAZ – Universidade do Meio Ambiente, no aprazível Parque do Ibirapuera. Uma experiência alegre, comovente e alucinante!